12 dezembro, 2009

EDUCAÇÃO E VIOLÊNCIA NO CAMPO: Perspectivas de sobrevivência

Elias Canuto Brandão
Doutor em Sociologia; Pesquisador no Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas e Gestão Educacional (GEPPGE-UEM); Coordenador do Coletivo de Estudos e Educação em Direitos Humanos de Maringá/PR (CEEDH).
OBSERVAÇÃO:
Artigo inicialmente publicado nos Anais do III Simpósio Internacional – Processo Civilizador: Educação, História e Lazer. 11 a 13/11/1998: ANAIS, Piracicaba/SP, Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), pág. 100 a 112.


“Falar em violência, no Brasil,
é falar, principalmente,
da participação ativa ou
da omissão deliberada do Estado,
tanto na cidade, como no campo.
É falar da ação concreta dos
aparelhos repressivos
do Estado e de particulares,
através da violência física,
mais explícita e direta;
ou da ausência
das mais elementares formas
de políticas sociais,
que vai minando lentamente
as possibilidades de vida
de grande parte da população.
[...]
Muito embora
os números de conflitos e assassinatos
tenham declinado,
convém lembrar que
a gravidade da violência no campo,
não se limita ao número elevado de conflitos.
O mais grave são as
formas refinadas da violência.
É a pedagogia do terror seletivo,
utilizado para golpear
as organizações dos trabalhadores
e destruir
os meios de produção dos pobres do campo, submetê-los.
Assim, não se mata aleatoriamente.”
(CPT, Conflitos no Campo – Brasil/1991, p. 32)


No presente estudo discuto os conflitos e violências no campo após o final da década de 70, a partir da ótica de que os conflitos e violências, em si, são fatores educativos. Os trabalhadores envolvidos – homens, mulheres e crianças, jovens e velhos – aprendem a se defender e discutir alternativas para não sofrerem tanto, mesmo sabendo que certas ações adversárias são inevitáveis e por demais violentas.
Se preparam psicologicamente e tentam sob e sobre todas as formas evitar o conflito, através do diálogo com os comandantes em serviço da Polícia Militar, com a justiça, com as igrejas, com os secretários de Estado e com o governo. Contatam a imprensa, quando há tempo, para documentarem a ação da política e se aproximam da sociedade para fazerem compreender que a luta pela conquista da terra, que desencadeiam, é justa e necessária. O conflito e violência no campo, assim como nas cidades é, em si, um curso intensivo, para o qual não acontece em salas de aulas, com carteiras, nem livros. É uma aprendizagem direta, por vezes sangrenta, prevalecendo a lei do mais forte, desrespeitando a Constituição do Brasil e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Apesar da violência no campo acontecer desde a antigüidade, perpassando a Roma Antiga e a Grécia, o Ocidente, o Oriente e a Idade Média, persistindo na Contemporaneidade, não se justifica sua existência.
No Brasil, os conflitos no campo são marcas registradas desde a invasão portuguesa, espanhola e francesa no século XVI, quando iniciaram a exploração destas terras, dizimando os nativos e dividindo as “terras a vista” em Sesmarias – em grandes latifúndios – em parte, administrados a longa distância, por famílias residentes em Portugal.
Na mesma lógica, os latifundiários contemporâneos residem nas cidades metrópoles e administram a longa distância suas terras em qualquer parte do Brasil. A diferença é a comunicação. Hoje a comunicação é direta e imediata. O latifundiário passa as ordens por telefone celular ao administrador-funcionário e recebe informações sobre qualquer problema em suas terras via telefone, fax ou internet. Mesmo a longa distância contrata jagunços e, sem participar diretamente de um conflito, ordena suas milícias a defenderem sua propriedade.
A violência no campo acontece através de modalidades bem definidas:
- trabalho escravo;
- mortes anunciadas;
- crimes de autoridades e policiais;
- omissão das autoridades;
- impunidades;
- ameaças;
- exploração do trabalho infantil...
Sobre os conflitos e violências, Moacyr de Oliveira Filho, disse que os mesmos ocorrem porque os grandes proprietários procuram:
[...] manter, a ferro e fogo, o latifúndio extrativista ou pecuarista. Como, na esteira desse processo, milhares de trabalhadores foram ficando e estão sem terra ou com pouca terra. O pano de fundo do conflito de Rio Maria – Sul do Pará – é assim o monopólio da propriedade da terra[...] (FILHO, 1991, PP. 11/12).
O Brasil está entre os países que mais concentra terra nas mãos de poucos grandes latifúndios e onde a concentração é demais escandalosa. A concentração e a forma de utilização da terra concentrada margea a sociedade, o direito e a oportunidade de acesso à mesma através de limites muitas vezes intransponíveis. Devido a forma de concentração, presenciamos os mais diferentes tipos de conflitos e violências:
· Massacre de Eldorado/PA;
· Violência contra lideranças e pessoas isoladas;
· Assassinatos de lideranças dos sem terra, sindicalistas, lideranças de associações ou cooperativas de pequenos agricultores, advogados, agentes pastorais e religiosos (Ex.: execução de Diniz Bento da Silva, o Teixeirinha, em Campo Bonito/PR, em março de 1993);
· Ameaças de mortes ou perseguições (Ex.: agressão e tentativa de assassinato sobre Maurício Fernandes Gutierres, em Piabiru/PR, em 05 de outubro de 1989 e ameaças de morte sobre: Pe. Francisco Prim, de Campo Mourão/PR; Elias Canuto Brandão, da CPT/PR e Zilda de Nova Cantu/PR, entre outros pelo Brasil);
· Massacre dos Inocentes de Corumbiara/RO;
· Ações judiciais contra lideranças do MST;
· Mortes no campo;
· Exploração da mão-de-obra infanto-juvenil na zona rural;
· Gritos e ameaças contra crianças acampadas;
· Pobreza e marginalização;
· Humilhações praticadas por policiais e jagunços sobre famílias trabalhadoras acampadas...
Apesar das lutas pela terra no Brasil serem históricas, enfatizarei a problemática da violência a partir da organização do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em 1978.
Naquele ano surgem lutas isoladas no Rio Grande do Sul. Em 1979, ainda no Rio Grande do Sul, ocorrem ocupações em duas fazendas e, no Paraná, devido a desalojação de agricultores pela construção da barragem da Binacional Itaipu, os mesmos se organizam para exigir terra e criam o Movimento Terra e Justiça. A partir de então, o Movimento evolui em todos os Estados, respeitando alguns processos de organização.
Três momentos marcaram oficialmente o nascimento do MST.
- Primeiro foi um grande encontro de trabalhadores rurais sem terra das regiões Centro, Sudeste e Sul do País no Município de Medianeira/PR, em julho de 1982.
- Segundo foi a realização do I Encontro Nacional do MST, entre 21 e 24 de janeiro de 1984, em Cascavel/PR.
- Terceiro foi a organização do I Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, com a participação da 1.500 lavradores de 23 estados brasileiros, convidados e representantes de organizações de trabalhadores rurais de vários países da América Latina, ocorrido entre 29 e 31 de janeiro de 1985, em Curitiba/PR. A partir deste Congresso o Movimento tende a crescer em busca da conquista da terra.
Por um lado organizou-se o MST e por outro, como resposta, organizou-se também a UDR – União Democrática Ruralista. O primeiro, objetivando reconquistar a terra pela ocupação organizada e pela resistência. O segundo, defender o latifúndio pelas milícias, pelas armas e pelas ameaças e intimidações. A UDR, nasceu em maio de 1985, em Goiás, no ano seguinte à organização do MST, objetivando impedir que as classes trabalhadoras participassem na luta pela Reforma Agrária e pelo processo político. Como na época, o MST, ainda novo e se estruturando, tinha o apoio direito de entidades como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e Comissão Pastoral da Terra (CPT), a UDR passou a comprar armas e atacar estas entidades ameaçando vários agentes de pastorais, líderes sindicais, religiosos e advogados.
Um fazendeiro integrante da direção nacional e presidente da UDR de Goiás, no início de sua criação chegou a dizer:
Hoje já podemos confessar que, realmente, compramos armas com os leilões. No primeiro, realizado em Goiânia, adquirimos 1.636 armas. Com o segundo, em Presidente Prudente (SP), adquirimos mais 2.430 armas e aí proliferaram as UDRs. Atualmente, temos mais ou menos 70 mil armas, representando a cabeça de cada homem da UDR, homens que deixaram de ser omissos na história do nosso país (A OFENSIVA DA DIREITA NO CAMPO, p. 21 – In.: O Germinal – Centro Oeste/GO, 1987).
A mídia nos mostra imagens de violências que, devido a sua constância, torna-se corriqueira e banal. A sociedade acostuma-se com a violência que passa a fazer parte do cotidiano[1]. Isto não significa que a sociedade exima-se em evitá-la. O desafio contemporâneo apresenta-se como a necessidade de desenvolver a arte de conviver com a violência, seja ela urbana ou rural, com indignação e compromisso com sua erradicação.
Até na década de 50, a população estava, em sua maioria, no campo. Após os anos 60, a política brasileira, em atenção às exigências externas – FMI, Banco Mundial,... – dobra-se mais do que suas possibilidades e potencialidades para captar recursos e indústrias e o processo se inverte.
Se antes o governo deva atenção aos agricultores, a partir de então, quem recebe atenção são os empresários. Deixa de existir uma política agrícola que apóia e incentiva os pequenos produtores que plantavam para subsistência e o incentivo volta-se à política para exportação. Cresce o setor industrial, comercial e as cidades.
A falta de incentivo ao pequeno agricultor e de uma política agrícola e agrária o desanima. A falta de preços sobre os produtos colhidos é fator determinante no desencadeamento da imigração. As cidades passam a ser um sonho “possível” devido a industrialização, sofrendo um crescimento desordenado e problemas estruturais e econômicos. As cidades não comportam a multidão que a ela se dirigiu. O salário mínimo achatou-se; criou-se problemas de moradia, água e esgoto; surgem as favelas; assaltos; falta de emprego para todos; drogas; assassinatos; violências urbanas; problemas familiares; falta de escola, saúde e lazer.
A população rural que chegava às cidades não tinha profissão ou especialização. Os mais jovens tiveram mais oportunidades de se encaixarem no setor secundário ou terciário. Os mais velhos perambularam biscateando, ora serventes de pedreiro, ora bóias-fria, ora guardas ou vigias, ora pau para qualquer obra...
Problemas como estes levaram e levam muitas famílias a lutar pela volta ao campo, mesmo que no trajeto tenham que enfrentar outras violências.
Desde o final da década de 70, a população que antes sonhara com empregos inexistentes nas cidades e sentindo-se à mercê dos acontecimentos estruturais e conjunturais, desempregada, sem possibilidade de futuro na zona urbana e com vasta experiência de trabalho no campo, sonha com a volta à terra e por ela passa a lutar.
Passam a fazer parte do Movimento Sem Terra, do Sul ao Norte do País, na concretização da Reforma Agrária – resguardado no Estatuto da Terra – e anunciada pelo Governo Federal desde o início dos anos 60 e concretizada em mobilizações, ocupações e/ou acampamentos[2] somente no final do regime militar.
O pesadelo das cidades (subemprego, violência urbana, assassinatos, drogas...) e o sonho pela terra, resulta em um novo pesadelo: os conflitos com as milícias organizadas pelos latifúndios e o confronto é inevitável.
As reações dos proprietários ou supostos proprietários, ocorrem de acordo com as ações do MST. No caso da organização de acampamentos, a reação ocorre após a efetivação dos mesmos.
Muitos latifúndios, em várias partes do Brasil, são formados pelas terras que pertenceram aos governos estaduais e que foram ocupadas pelos fazendeiros há anos atrás, ou formados por terras griladas de sitiantes a volta das fazendas expulsos pelas ameaças, ou pelas invasões das cercas, ou adquirida a qualquer preço sob pressão e ameaças. Muitos latifúndios o são não porque os seus proprietários trabalharam para aquisição, mas porque a conjuntura econômica e política do Estado desfavoreceu os agricultores e, a estrutura de defesa inexistente possibilitou as ações que concretizaram as situações de negociação forçada de venda de pequenas propriedades.
À medida que os trabalhadores rurais encurralados pelo desemprego e inchaço das cidades e pela concentração da terra nas mãos de latifundiários, participaram ou participam das ocupações, o que se presencia é a violência.
Ameaças, perseguições, assassinatos e prisões ilegais de trabalhadores se tornam práticas conhecidas. Participam deste conjunto ameaçador os fazendeiros, os jagunços, os policiais e boa parte da imprensa através da manipulação indevida das notícias veiculadas. Sobre a violência em geral recai a impunidade.
É espantoso o número de líderes rurais assassinados por pistoleiros a soldo de grandes latifundiários. E é lamentável a impunidade alimentada pela deficiências e vícios dos aparelhamentos policiais e judiciais. De 1985 ao primeiro semestre de 1990, foram assassinados 520 trabalhadores rurais. Nos chamados “tribunais dos crimes do latifúndio”, o advogado Arthur Lavigne denunciou que cerca de sessenta advogados populares, que defendiam posseiros, foram mortos, entre 1977 e 1988.
Em geral, os assassinatos têm motivação política, atingindo principalmente líderes específicos, e são cometidos por pessoas que, na maioria dos casos, escapam à identificação (BICUDO, 1994, pp. 17-18).
A violência no campo parece não ter fim. Não porque a sociedade não queira. A questão é política. O Estado, enquanto administrador, não desenvolve ações concretas de políticas agrícola e agrária que viabilize a justiça social. Falar não é fazer.
Se houvesse uma política agrária que fixasse o homem no campo, haveria violência no campo? Pelas análises de muitos economistas, sociólogos, antropólogos, educadores, religiosos e sindicalistas, não. Mas, o desenvolvimento de uma política agrária e agrícola séria, voltada à agricultura familiar, não faz parte dos planos dos governos da direita que historicamente, até este final de século XX, administraram os estados e a nação brasileira. Em épocas de campanha eleitorais ou em momentos de tensão social no campo, o governo apressa-se em apresentar planos de reforma agrária, não por ser uma questão de interesse político e econômico, nem prioridade e sim para tentar amenizar as tensões em evidências.
Os Sem Terra, pensamos, não participam em ocupações e acampamentos por prazer. A necessidade de garantir um meio digno de sobrevivência é que prevalece. Não enfrentam um despejo porque querem sentir o gosto de levar cassetadas de policiais que obedecem ordens judiciais. Enfrentam porque querem garantir o direito de viver plantando, colhendo e se alimentando com o que produzem na terra. A autorização da justiça para que a violência seja realizada oficialmente e cumprida pelo Estado, através da polícia, caracteriza tipos de violência as quais podemos chamar violência legal e violência ilegal.
Nem os advogados escapam ou escaparam à violência ilegal, ameaças ou tentativas de assassinatos.
O Advogado Antônio Evaristo de Moraes Filho, Coordenador-Geral da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados, em pronunciamento durante a Sessão do Dia 18 de Dezembro de 1985, em Marabá/PA, diante dos fatos ocorridos naquela cidade, semelhantes aos que ocorrem pelo Brasil, disse:
[...] os advogados, que se arrojam na defesa dos camponeses, são dominados pela mesma sensação de impotência, que desabava sobre nós, defensores de presos políticos, nos tempos da ditadura. Sentimos no ar o conluio entre o poder econômico do latifúndio e as forças estatais incumbidas de manter a ordem e de distribuir justiça. Vimos que os muros desta cidade de Marabá são cobertos de dísticos reveladores de que o povo está descrente dos homens da lei. E não é para menos, diante da despudorada impunidade que desfrutam os usurpadores da terra, mandantes dos massacres. São freqüentes as denúncias sobre o conúbio de jagunços com os policiais, supostamente incumbidos de combater os pistoleiros de aluguel (OAB), P. 61).

No final de seu pronunciamento, o Advogado sintetiza:

[...] sem concretizarmos uma Reforma Agrária autêntica, que reflita os anseios da Justiça Social, não teremos a paz no campo, paz que surgirá como uma alvorada, marcando uma etapa de nossa luta por um mundo mais fraterno e melhor (OAB, p. 62).

Por outro lado, esta não é a visão dos proprietários rurais. Para estes, os sem terra são “invasores” de propriedades alheias e o governo é culpado pelos acontecimentos e conflitos no campo. Para a Federação da Agricultura do Paraná (FAEP), a impunidade leva os sem terra “invadirem” as propriedades particulares.

Uma vez mais a Federação da Agricultura reafirma que a questão central das invasões está na impunidade que os governos concedem ao MST, cuja lógica está na impunidade que os governos concedem ao MST, cuja lógica reacionária é o seu próprio entendimento de ser a vanguarda de uma nova ordem social para o Brasil, daí seu envolvimento político eleitoral, suas ações de rapinagem em saques e roubos e sua invasões de prédios públicos.
Tal lógica faz com que o MST tenha como princípio o acerto de contas, revanchista, entre sem-terras e produtores rurais, cuja tática é o confronto e a intimidação, procurando dar a entender à sociedade que quando realizam invasões é uma questão de justiça social e que quando, nesse contexto, os produtores rurais exercem a defesa de seus patrimônios, ou então a Justiça concede reintegração de posse, tais ações são violentas legitimadas (MENEGUETE, 1998, p. 2).

Pesquisando as violências, observa-se que quase cem por centro são provocadas ou pelos proprietários, ou pela justiça e ou pelos policiais com a conivência do Estado. A própria fala do presidente da FAEP, no Paraná, deixou claro que os produtores “exercem a defesa de seus patrimônios” também sem a concessão da reintegração de posse, causando ações violentas. Quando a concessão da reintegração é feita, a violência tem a legitimidade da lei.
Parece-nos que não justifica a violência policial o fato dos trabalhadores rurais sem terra terem realizado uma ocupação ou acampamento. As ocupações são respostas à organização do modelo econômico do sistema capitalista e à política de exclusão social.
Os excluídos necessitam sobreviver e não tendo emprego, moradia, saúde e educação nas cidades para onde migraram, não vêem outra alternativa a não ser reocuparem a terra de onde foram forçados a sair.
A violência processada no meio rural tem sido fruto da otimização das políticas do descompromisso social com a questão agrária. A violência que se manifesta no compasso das lutas pela terra, são explicadas politicamente como estratégias de manutenção da ordem social vigente. Enquanto que para o MST, fechar uma agência bancária ou fazer uma ocupação ou acampamento, é participar do direito de viver; para os latifundiários, essa ação é sinônimo de violência. Enquanto a fome e o desemprego, são sinônimos de violência social para o MST, para os latifundiários e para os governos, são problemas de ordem estrutural a serem acomodados. Essa realidade de compreensão nos mostram a violência como uma reação do sistema para impedir que setores organizados da sociedade o desestruture.
Compreendemos que estes pensamentos explicam a violência que ocorre por abuso de poder por todo o Brasil através de decisões do judiciário ou do executivo ou por parte do comando da polícia militar que, por reiteradas vezes, resulta em confronto. Dois casos ocorridos em 1998, em Estados diferentes ilustram as violências, ameaças ou intimidações. No primeiro caso, a Polícia Militar de Goiás monta operação de guerra para despejar, ilegalmente, famílias acampadas. No segundo, mesmo tendo a Juíza de Joinville/SC, negado o pedido de reintegração de posse de uma fazenda ocupada, os policias fizeram repressão e ameaças, atirando para o alto.
Primeiro caso:

Eram quatro horas e meia da madrugada de domingo, 31 de maio, quando 250 homens da Polícia Militar de Goiás invadiram o acampamento Alta Floresta, no município de Itaguari, e realizaram o mais violento despejo da história da luta pela terra no Estado. Foram usados cavalos, cachorros, armas pesadas e até helicóptero. Uma verdadeira operação de guerra para realizar o despejo de 275 famílias sem terra.
A PM seguiu à risca as determinações do ex-ministro da Justiça, Íris Rezende, de usar a força contra os sem terra. No final do ano passado, ainda no cargo, Íris chegou a autorizar a participação de fazendeiros e pistoleiros nos despejos de trabalhadores rurais, numa reunião com secretários estaduais de Segurança Pública de todo o país.
A maioria dos sem terra estava dormindo quando a PM chegou e não teve tempo de reagir. Os policiais colocavam cavalos para pisar nos trabalhadores, soltavam os cachorros dentro dos barracos, batiam com cassetetes, cabo de armas e baionetes.
Após o massacre os policiais mandaram todos os sem terra deitarem no chão, apontaram armas e gritaram frases provocativas. Algumas crianças que choravam deitadas no chão tiveram os dedos das mãos pisoteados por PMs. Por volta das 8 horas, 26 trabalhadores foram presos e levados para a delegacia de Itaguari onde foram mantidos incomunicáveis, entre eles lideranças do MST. As famílias foram jogadas em cima de caminhões e despejadas em Taquaral, um município vizinho. A polícia ainda roubou dinheiro de vários sem terra.
Quarenta e cinco trabalhadores ficaram com ferimentos graves (JORNAL SEM TERRA, 1998, p. 6).

Segundo caso:

Cerca de 300 famílias de trabalhadores rurais sem terra ocuparam a fazenda Pirabeiraba, em Joinville, na madrugada de 6 de junho [...]. A área [...] tem mais de 3 mil hectares, improdutivos e desmatados. Existe uma usina de açucar desativada e abandonada há anos.
O proprietário entrou com pedido de reintegração de posse no mesmo dia da ocupação. A juíza da Comarca de Joinville negou o pedido. Ela considerou insuficientes as provas apresentadas e quis ouvir o MST. [...] A mobilização contou com o apoio da população local. Muitas pessoas demonstraram solidariedade à luta dos sem terra. No Fórum, a polícia aguardava os manifestantes.
A repressão da polícia também foi constante no acampamento. Policiais davam tiros para o alto, soltavam bombas próximo ao local e desfilavam em cavalos e caminhonetes com armas pesadas e coletes à prova de bala (JORNAL SEM TERRA, 1998, p. 7).

Observando os problemas de violência de Norte a Sul e de Leste a Oeste no Brasil, o advogado e deputado Aldo Arantes (PCdoB-GO), entende que o “Poder Judiciário é parte do Estado e defende os interesses dessa elite e dessa instituição de poder. É por isso que reina a impunidade da violência contra os trabalhadores” (FILGUEIRAS, 1997, p. 9).
Preocupado com o que vem acontecendo no campo e com a forma como os juizes encaminham os processos, o advogado João Luiz Duboc Pinaud[3], entende que:

A realidade político-jurídica dos que trabalham no campo e são dele excluído não será vista e compreendida através das lentes dos relatos formais sobre ela mesma. O conflito trágico que não aparece nos muitos discursos jurídicos, na doutrina conservadora, na jurisprudência dominantemente escravocrata e, menos ainda, nas leis. Todas as justificações “jurídicas” do latifúndio em detrimento dos camponeses reiteram os pactos – expressos ou tácitos – que legisladores e juízes sempre fizeram com os escravocratas senhores da terra.
São urgentes as tarefas jurídicas dentro das alternativas de produzir conhecimento sobre essa realidade, tornar conhecida a fratura externa do nosso sistema econômico, desvendar os discursos implícitos ou não, para tentar desestruturar o poder que fala através dessas linguagens. E auxiliar, por exemplo, o Movimento dos Sem Terra não só a lograr realizar inteiramente o seu ser, auto-instituir-se e auto-organizar-se contra uma “ordem” legal injusta e em favor de outra ordem justa das relações entre pessoas (PINAUD, 1996, p. 838).

Transportando esta produção de conhecimento para a análise educativa, podemos dizer que os conflitos são educativos, são aprendizagens indispensáveis. Não significa que seja uma escola. Mas à medida que pessoas e famílias participam de uma organização como a do MST, com o objetivo de ocupar e produzir, acampando, fechando estradas, postos de pedágios, instituições governamentais e bancos, estão elas estudando alternativas de não se confrontar diretamente com a reação violenta do Estado, através do Poder Judiciário, representado pela força policial, milícias armadas e jagunços. Estas famílias estão, inegavelmente, produzindo conhecimento sobre essa realidade.
Os trabalhadores não apanham porque gostam e nem resistem por prazer. A ciência da condição precária de vida e da realidade, garante a sustentação dos atos políticos e a busca de alternativas para fugirem dos confrontos.
A agressão e a pancadaria estratégica da polícia com seu batalhão de choque, cavalaria e cachorros, apoiados e assessorados pelos fazendeiros, com ajuda de jagunços e milícias armadas, podem ser facilmente rastreados nos jornais como ação em favor da manutenção da ordem social vigente. Ao educador, as estratégias militares podem ser interpretadas como conteúdos oficiais a serem apreendidos para que a defesa possa ser planejada. Nessa história, o aprendiz é o futuro educador. O aprendiz é o agricultor que apanha e apreende que bater não é defesa, é ataque, é agressão, é desrespeito aos direitos humanos natos a todos os cidadãos.
É na busca da defesa que o Movimento produz conhecimento, Conhecimento dos direitos humanos, constitucionais e legais.
Esse processo é educativo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A OFENSIVA DA DIREITA NO CAMPO - Versão Preliminar. Elaboração resultado das contribuições da CPT; ABRA; IBASE e MST.
AGENDA – MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Brasil, 1986.
BERGAMO, Mônica. Executados, torturados e humilhados. In.: Revista Veja. São Paulo: Ed. Abril, 6 de setembro, pp. 38-42, 1995.
BERGAMO, Mônica e CAMAROTTI, Gerson. Sangue em Eldorado. In.: Revista Veja. São Paulo: Abril, 24 de abril, pp. 34-44, 1996.
BICUDO, Hélio. Violência: o Brasil cruel e sem maquiagem. São Paulo: Moderna, 1994 (Coleção Polêmica).
CALDART, Roseli Salete. Educação em movimento: Formação de educadoras e educadores no MST. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
CAMPANHA NACIONAL PELA REFORMA AGRÁRIA. Violência no campo. Petrópolis: Vozes-IBASE, 1985.
CENTRO DE EDUCAÇÃO POPULAR DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE (CEPIS). Reflexão sobre a violência no campo. São Paulo: CEPIS/MST.
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos de Terra no Brasil – 1986. Goiânia/GO; CPT, 1987.
__________. Conflitos no campo – Brasil/1991 – Terra, água e paz; Viver é um direito!. Ed. Loyola, 1992.
__________. Conflitos no campo – Brasil 93. Goiânia/GO: CPT, 1994.
__________. Conflitos no Campo – Brasil 94. Goiânia/GO: 1995.
__________. Conflitos no Campo – Brasil 97. Passo Fundo/RS: Ed. Pe. Berthier dos Missionários da Sagrada Família, 1998.
__________. Pe. Josimo: A velha violência da nova república. Goiânia/GO: CPT, 1986.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. 3ª ED., São Paulo: Ática, 1989.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. 3ª ed., São Paulo: CESE/Paulinas, 1978.
DOSSIÊ – MAURÍCIO FERNANDES GUTIERRES. 52ª Delegacia Regional da Polícia de Peabiru/PR. Portaria nº 42/89.
EDSON, Antonio. Pequenos trabalhadores, grandes problemas. In.: Revista Família Cristà. São Paulo: Ed. Abril, Ano 64 – Nº 748, abr., 1998.
FILGUEIRAS, Otto. A justiça e a revolução. In.: Revista sem terra. Ano I – nº 2 – out/nov/dez., 1997
FILHO, Moacyr de Oliveira. Rio Maria: Terra da morte anunciada. São Paulo: Anita Garibaldi, 1991.
JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. São Paulo: Ano XVI - Nº 180 - Jul/1998.
MENEGUETE, Ágide. A impunidade do MST. In.: COCAMAR – Jornal de serviço. Maringá: Ano XX, nº 399, 2ª Quinzena – setembro, 1998.
MIRANDA, Luiz Almeida. Violência no campo. In.: Revista de informação legislativa. Brasília/DF, Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, Vol. 33 – nº 130 – abr/jun. – 1996.
NETTO, Vladimir. Caso de polícia – Com o aumento da violência no campo, o governo aciona a polícia federal e 500 homens do exército. In.: Revista Veja. São Paulo: Abril, Vol. 31, nº 14, 1998.
OAB – ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Violência no campo: Documento da OAB – Conselho Federal. Rio de Janeiro/RJ: Folha Carioca Editora Ltda.
PINAUD, João Luiz Duboc. Conflitos coletivos e violência. In.: XVI Conferência Nacional dos Advogados do Brasil: Anais – Direito, Advocacia e mudança. Brasília: OAB, Conselho Federal, 1996.
PINHEIRO, Paulo Sérgio, POPPOVIC, Malak El-Chichini e KAHN, Tulio. Pobreza, violência e direitos humanos. In.: Novos Escudos – CEBRAP. Ed. Lis Gráfica, nº 39, jul. / 1994
SAMPAIO, Plínio Arruda. Violência no campo – Estancar é preciso. In.: Revista Família Cristã. São Paulo: Abril, vol. 52, nº 607, jul., 1986.
STÉDILE, João Pedro (org.). A reforma agrária e a luta do MST. 2ª ed., Petrópolis, RJ : Vozes, 1997.
NOTAS DE RODAPÉ
[1] Comentando o fenômeno da violência e o risco da sociedade banalizá-la, a CPT descreveu que “A violência no Brasil [...] é um fenômeno estrutural, está enraizada no ethos social, entranhada em nosso modo ‘jeitoso’ de ser. Muitas vezes exacerbada, persistente sempre, tornou-se corriqueira, banalizada; parece Ter embotado nossa capacidade de indignação. Com muitas faces, nem sempre evidente, exercida de modo polivalente, nos espaços infinitesimais da vida cotidiana, a violência nossa de cada dia constitui um desafio à compreensão, maior ainda à superação” (COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no Campo – Brasil-94. Goiânia/GO, p. 7).
[2] Há pessoas, grupos e MCS, que chamam as ocupações de invasões. Não fará parte do meu vocabulário o termo invasão, pois, entendemos que, o que objetivam os participantes do MST é ocuparem terras ociosas ou largadas ao mato. Para as ocupações, realizam levantamento a respeito da área para saberem a quem pertence. Se está produzindo e devidamente documentada. Se deve ao Estado ou à União. Qual a possibilidade de desapropriação para fins de reforma agrária. Após os estudos e a certeza, acreditamos, realizam a ação.
[3] João Luiz Duboc Pinaud, é membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB; Consultor Jurídico da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB e Coordenador do Instituto de Pesquisas Jurídico-Sociais e Políticas (STVDIVM).

Um comentário:

  1. Anônimo2/3/10 17:06

    Olá professor
    Gostaria de ver possibilidades de disponibilizar o seu texto em pdf. Vou desenvolver uma oficina com professores e gostaria de utilizá-lo.
    Aguardo retorno.
    Marcia Rodrigues Ponta Grossa - Pr.
    mar_rodrivaz@yahoo.com.br

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