04 dezembro, 2006

As vozes que não estão no discurso oficial*

*Capítulo parte do livro: História Social. Jorge Ulises Guerra Villalobos e Maria Aparecida Cecílio (orgs.). Maringá/PR-Brasil, 2000. Programa de Pós-Graduação em Geografia-UEM, pp. 101-129 – (ISBN 85-87884-05-0). O capítulo é resultado da transcrição de três entrevistas a lideranças do MST, tendo como título: "História social: as vozes que não estão no discurso oficial".

Jorge Ulisses Guerra Villalobos
Profº. Dr. do Departamento de Geografia da Universidade Estadual de Maringá/Paraná-Brasil (UEM).
Elias Canuto Brandão
Hisoriador, mestre em Educação e doutor em Sociologia. Profº colaborador no Departamento de Ciências Sociais na Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí/Paraná-Brasil (FAFIPA); Conselheiro nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos do Brasil (MNDH-Brasil) e coordenador do MNDH no Estado do Paraná-Brasil.


Este trabalho objetiva resgatar e trazer para o público leitor dos assentamentos Rurais de Reforma Agrária – e sociedade em geral –, três histórias de vida, escutadas ao longo dos trabalhos de campo desenvolvidos junto aos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Estado do Paraná.
De fato os conteúdos dessas três histórias de vida, que aqui denominamos vozes, são parte da história social. Da história contada pelo povo e que em raras oportunidades são publicadas e lidas por um público mais amplo.
Nesse sentido, as restrições estabelecidas pelas editoras por um lado, bem como a negação do seu valor como documento por outro, são dois argumentos empregados para reduzir seu valor histórico e social.
Na contramão desse processo, acreditamos que as histórias que o povo sabe, mas não escreve, devem ser de forma sistemática incorporada aos textos escolares, assim como redigidas em papel para reconstruir uma história de exploração, de silêncio e de morte no dia a dia dos trabalhadores. Assim, vemos que é fundamental transformar nossa história em história escrita, como forma de resistência e cidadania.
As histórias que transcrevemos foram gravadas em fitas magnetofônicas, em diferentes tempos e lugares. A primeira foi realizada pelo Professor Osvaldo Heller da Silva, do Departamento de Ciências Sociais da UEM, na cidade de Londrina em 1994, à Dona Maria Izolina Pinheiro – Dona LINA. Esta senhora foi uma das precursoras do MST no Paraná.
A segunda entrevista foi realizada por Jorge Villalobos a Ireno Alves dos Santos, na cidade de Cantagalo em 1995. Ireno, de saudosa lembrança, foi um dos líderes do MST indicado pelas bases para participar como candidato a Deputado Estadual no Paraná em 1996.
A terceira entrevista também foi realizada por Jorge Villalobos, na cidade de Inácio Martins, em 1995, a Verônica, acampada por dois anos na Fazenda Papagaios.
No critério de indicação dos três depoimentos, consideramos diferentes perspectivas, tanto as de gênero como o grau de envolvimento no movimento social.
Nas transcrições das fitas realizamos uma intervenção permanente, no entanto esta não alterou o conteúdo bem como a forma da expressão dos entrevistados. Devemos destacar que a reprodução direta das vozes não se transforma por si só na história. Entendemos também que é fundamental que os próprios trabalhadores escrevam o que vem acontecendo com eles.

A primeira história: Dona Lina

A Dona Lina, ao contrário do que os livros de história costumam dizer, afirma...
Quando cheguei no Norte do Paraná em 1954, vi índios e nordestinos, pernambucanos e alagoanos, que já estavam aqui há uns 5 anos. Havia uma área muito grande com índios, muitos bichos, até onça, que chegava a atacar alguém da família. No Guaraci, uma onça chegou a ficar 2 horas atrás de uma tia minha.
Os índios habitavam em toda a área de Ortigueira e Guaraci. Os fazendeiros chegavam aqui, matavam, colocavam jagunços e faziam escravos. Um tio meu veio para cá primeiro do que nós e foi morto em 1962. Nessa época já se estava lutando contra um fazendeiro chamado Brevem que tomava as áreas. A família dele mora aqui em Londrina até hoje. Os herdeiros dele estão aí, netos e filhos. Em 1960 havia bastante safristas, caboclos que criavam porcos, os fazendeiros chegavam e pegavam a área demarcada e diziam que a área era deles e expulsavam a chumbo quem entrava ali. Isso já acontecia conosco.
Tudo isto sucedia em Londrina, Guairacá e Iporã no tempo do Bento Munhoz da Rocha e Moisés Lupión. Aquela turma toda, por volta de 1961, já se estava fazendo despejo.
Em Curitiba os fazendeiros só andavam por cima, de avião. Avistavam uma área que era só mato e tomavam posse. Para isto eles iam lá no governo e este dava uma faixa de terra e um documento.
É de vocês, dizia.
Então eles voltavam e marcavam tudo. Com um marco de ferro aqui, outro lá. É como se diz “mundo velho”, fazia a quadra. Depois vinha o despejo dos que viviam nas terras, assim os fazendeiros podiam vandê-las. Não que as terras fossem deles, mas o governo deva para eles milhares de alqueires.
Esses fazendeiros cortavam as terras em lotes pequenos de 10 a 40 alqueires e vendiam, assim como ocorreu com o Jeremias Lunardeli e Barbosa Ferras. Nesse esquema, abraçavam o Paraná inteiro e o governo falava, que aquilo lá era para eles. Então vinham, ajudados por cangaceiros, e assassinavam os posseiros que estavam nas terras trabalhando. Há muitos fazendeiros donos de terras que trabalharam ajudando no despejo, como foi João Miranda Barbosa.
Veja, as lutas sociais não são de hoje. Assim como em Porecatu, no norte de Minas Gerais, em 1943, meus parentes eram do PC do B e eram muito perseguidos. A partir daí eles calaram a boca. Hoje que renasceu o movimento social a gente não fala mais em luta, ficaram com medo, passaram por muitas repressões. Têm pessoas como o Rafael que passou 3 dias embaixo de uma montanha de terra. Ele vive até hoje, mas não fala mais e nunca mais voltou a participar.
Ele foi uma das pessoas que em 1983 estava lutando aqui em Londrina e ele também foi pequeno proprietário em Rosário e foi muito oprimido pela burguesia.
Em 1983, teve que fugir para o Mato Grosso e lá também foi massacrado em uma fazenda vizinha do Sílvio Santos. Lá houve um massacre terrível. Duzentas famílias passaram por maus momentos três dias de desespero. O massacre não foi registrado no Mato Grosso do Sul.
Esse meu tio também sofreu com o massacre e quando voltou, logo em seguida, participou de uma ocupação. Em 1984 ele já estava muito abatido, sem condições de trabalhar. Hoje ele está aqui no centro de Londrina com 72 anos.
A gente nem chegou a procurar o sindicato dos trabalhadores rurais para denunciar, porque pensávamos em sair da favela, era o medo.
Nesse momento, os Sem-Terra só pensavam em terra para trabalhar e ter a Cida que a gente tinha antigamente. Após um ano aí é que tivemos uma oposição e começamos a participar das eleições do sindicato, mas perdemos, porque o pessoal é na sua maioria bóias-frias e por isso não são politizados. Descobrimos também que os que são sindicalizados eram trazidos pelos patrões para votar em quem eles mandavam.
Os pequenos proprietários também não freqüentavam o sindicato e os assalariados das fazendas eram todos filiados ao sindicato.Nós tivemos a idéia de sair pela oposição do sindicato, porque não concordávamos com eles havíamos descoberto que o sindicato estava contra o trabalhador.
Fazia 24 anos que o Sindicato estava sob a presidência do seu Antônio. Aí a gente começou a ver que alguma coisa estava errada. Ele não entendia nada de Sem-Terra, mas jamais falava isso. Discursava sobre a reforma agrária do governo, procurava cadastrar o pessoal, mas em nenhum momento ele participou na luta conosco.
Ele não foi quando fizemos ocupação e não ia ou participava em nenhum movimento de bóia-fria. Ele se preocupou sempre em caminhar pela FETAEP, com as ordens da Federação.
Agora, esse não foi o único problema vivido aqui em Londrina ou na região. A gente tem muitos problemas, o maior de todos é com a UDR.
O pessoal da UDR mora nos distritos e se disfarçam muito bem. Eles conseguem se infiltrar no assentamento, levando sérios problemas ideológicos, uma vez que as pessoas do assentamento são pessoas simples, passando a ser perseguidas. Porem, eles não se assumem como UDR, a de pesar que em todos os distritos existe uma organização de fazendeiros. Aqui mesmo em Londrina, Norte do Paraná, a gente sabe que a UDR é muito grande, mas os fazendeiros se disfarçam porque 84% da mão-de-obra são bóias-frias e como tal, disfarçam e os enganam através dos “gatos”.
Os gatos se passam como amigos dos bóias-frias. Vai atrás do trabalhador para trabalhar e consegue enganá-lo, mesmo sabendo que o patrão é um inimigo. Os bóias-frias acreditam no gato como amigo.
O companheiro que já foi bóia-fria e que hoje está lutando pela terra, defende o gato,m porque se não fosse ele, não comia e não bebia. Só que os bóias-frias não entendem que por trás do gato estão os fazendeiros e a UDR que fazem de tudo para desmanchar qualquer organização dos trabalhadores.
Tanto eu como o Pio (Joaquim Pacheco de Lima, agente da Comissão Pastoral da Terra do Paraná - CPT/PR – região Norte do Paraná, entre 1984 e 1992)
, que somos os que mais atuamos, já na ocupação de Santa Teresa em 1989, fomos perseguidos. Por exemplo, já por 3 vezes tentaram me atropelar, disfarçadamente, mas o que foi mais difícil foi a ocupação do Guaracá, na qual, segundo o pessoal, eu mesma não conheço, chegaram a oferecer 800 mil, pagos pelo deputado federal Wilson Moreira e os fazendeiros, para quem atirasse na minha cabeça.
Os soldados leiloaram quem ia ser o primeiro. Isso a gente sabe porque um próprio policial militar chegou a confirmar, pedindo muito segredo.
Eu era uma pessoa marcada e se atirassem na minha cabeça poderiam ficar sossegados, Isso era o que eles falavam e pensavam.
Já de início eu fui uma pessoa muito visada pelo pessoal como agitadora. A gente sempre esteve ao lado dos Sem-Terra, levando sua bandeira. Junto com os bóias-frias ocupamos ônibus e prefeitura. Para eles, eu era a liderança. Então é a dona Lina que tem que morrer, pensavam e falavam.
Eu acredito que ninguém quer morrer. Eu jamais quero ser mártir. Adoro a vida e acredito que a gente tem que lutar, para ter um país melhor.
É indiferente ser um ou outro, mas nenhum de nós quer morrer, ninguém quer passar por isso. Também sabemos que estes são meios para fazer o movimento parar.
Só que a luta é essa e nós temos um projeto de transformação de sociedade e não é a burguesia que vai nos fazer calar.
A luta continua não só no movimento sem-terra, mas em todos os lados por uma transformação geral do País. A reforma agrária para nós não é somente a terra, é a transformação de uma sociedade.
A terra deveria ser o de menos, pois na verdade quem quer a terra a quer para produzir. Nós precisamos muito mais do que 5 ou 10 alqueires de terra. Precisamos de tecnologia e de infra-estrutura. Precisamos de condições para trabalhar a terra e isso nós não temos. Também precisamos de terra fértil e só estamos pegando as piores terras, as quais têm todas dificuldades para plantar.
Também temos que nos envolver na política se quisermos uma reforma geral da sociedade. Essa reforma inicia-se com terra para os Sem-Terra e também com uma transformação do poder econômico e ideológico. Isso é o que nós queremos.
Além de sem-terra e favelada, sou negra e mulher. Por isso a gente enfrenta muita dificuldade. Mas, fora isto, eu luto também pela concretização das mulheres. No início da luta eu não sentia isso, para mim não tinha a discriminação, eu a descobri na luta. Para mim a problemática é a da sobrevivência do trabalhador, mas nós como mulheres somos discriminadas, até porque nós temos uma educação arcaica. O machismo não está só nos nossos companheiros homens, mas em nós mulheres também.
Por isso nossa luta é pra que a mulher veja isso, que ela tenha condições de deixar esse tabu, no qual a mulher é só para ficar em casa cuidando dos filhos.
Sendo líder a gente não tem hora de sair e nem de chegar. Eu apanhei bastante do marido durante 5 anos para eu conseguir chegar neste lugar onde estamos hoje. Foi uma força imensa que tive de fazer para chegar até aqui. E tem muitas companheiras com mais capacidade do que companheiros homens. Elas com certeza têm capacidade e condições de desenvolver um trabalho, mas são repreendidas pelos maridos, até mesmo pela sociedade. Por que? Porquê de repente você está chegando 4 horas da manhã, o homem ou o companheiro que está vendo, pensa que você vem de um motel.
Eles observam você pegando um carro ou andando na garupa de uma moto e concluem coisas. Vêem muito mais você como um objeto do que como liderança trabalhando pela mudança e transformação da sociedade.
A gente tem passado muito por isso, por esse motivo eu priorizei trabalhar com mais mulheres e é o que eu estou fazendo. Não se trata de separar as mulheres dessa caminhada, mas de reforçar as mulheres e os companheiros homens para a caminhada. Por exemplo, a gente quer quebrar o tabu de ver valorizada a mulher pelo seu corpo. Nós queremos confirmar que estamos lutando e defendendo a mesma causa e por isso devemos respeitar os direitos dos outros.
O machismo não só dos homens, mas é também das mulheres, assim como o racismo. Aqui nesta região o machismo não é tanto porque a região foi iniciada com nordestinos. Agora na região Sul o racismo é muito grande. Em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, é muito maior entre os próprios companheiros de luta. A gente foi rejeitada em alguns momentos e eu senti isto na pele.
Por exemplo, em 1987 quando eu cheguei no Congresso Estadual do Movimento Sem-Terra, na hora que eu fui descendo do carro, um companheiro pegou na minha mão e disse o seguinte: “Esta aqui é uma negra de alma branca, esta aqui de negra não tem nada”. Eu disse: “até a minha alma é negra. Eu não tenho nada branco”. Então existe esse tipo de coisa.
Na época da campanha do Klaus Germer, eu fui fazer um trabalho no assentamento e o pessoal falava que para lá ia uma Lina, mas os companheiros não avisaram que era uma baita de uma negona que tava chagando. Quando cheguei senti na pele a discriminação.
As crianças corriam porque eram todas lourinhas de olhos azuis, de repente chega lá uma baita de uma negona de cabelo “pico mãe”.
Eu vejo que é uma luta ainda muito marcante. Ainda hoje no ônibus quando a gente começa a discutir política, levo o nome de sarará ou de bruxa. O que eu quase não tomo é nome de comunista, mas esse tipo de coisa a gente carrega muito nas costas. Então o racismo existe, está aí. O machismo a gente está tentando corrigir, se não corrigir está aí a educação que nós tivemos e que não vai ser hoje que vai mudar, mas eu pretendo trabalhar contra esse tipo de coisa.
É forte na minha família a Igreja Católica. Sou nascida e criada nela, até é por isso que minha família não gosta de falar do passado, até porque depois que nós chegamos aqui uma das separações do grupo foi por envolvimento da Igreja Católica. Embora eu jamais concordasse com as ações da igreja, a partir do momento que eu tenho outra cabeça, eu luto por uma fé. Mas minha fé é uma utopia.
Eu acredito numa fé diferente. Para mim há dois deuses, um Deus do trabalhador e um deus do opressor.
O deus do opressor é o dinheiro e o Deus nosso é a vida. Nós lutamos pela vida. Qualquer Igreja tem seu modo de reprimir, uma maneira de repressão, de timidez, contra a qual eu luto. Para mim a celebração do trabalhador está na sua expressão e ele está aí, independente da Igreja. Para mim existem duas lutas, uma do trabalhador e outra do opressor.
As vezes, eu costumo ir à Igreja e tenho discutido muito e lido a história da negritude. Eu admiro o candomblé, que até hoje tem trazido a cultura da raça negra com toda essa repressão. A minha família freqüentava, mas é muito difícil, quer dizer, quase a gente não tem tempo, mas eu creio e acredito e tenho fé, creio numa mudança diferenciada desse Deus que a igreja impõe nas pessoas.
Para mim o amor está na pessoa sofredora, e não na pessoa opressora porque ele defende o poder do dinheiro através dessa fé.
Tenho cinco filhos e a partir do momento, que eu entrei na luta, eu fiquei muito pouco tempo com eles. Mas quando estamos juntos a gente fala muito para que eles entendem, porém eles acham que eu me exponho demais e que não é por aí. Como foi na ocupação de Guairacá, meus filhos me chamaram e disseram:
- Olha, você já pensou se for presa, ou se alguém quiser sua cabeça? Apenas você ia ser um marco, sem ninguém. Poderia alguém lembrar por um ano ou dois, depois esqueceriam. Tudo bem. Você pode lutar, mas não se exponha tanto, que ainda não é o momento e não é uma pessoa só que vai fazer a transformação.
Eles pensam assim, mas eu recebo todo apoio da minha família, mesmo de meu companheiro, meu marido, não é bem um companheiro, mas hoje já há uma compreensão maior.
Hoje, a mais velha dos meus filhos, que trabalhou em casa de família, é telefonista e tem os outros que lutam também pela terra, esses não gostam da cidade, mas são obrigados a estarem aqui para estudar.
Eu acho que isso é importante, até pela dificuldade da discriminação, também porque a gente estudou até a 4ª série e isso nos trás muitas dificuldades em alguns momentos. Para entender alguma coisa, em alguns debates mesmo tem algumas coisas que a gente não consegue entender. Eu pretendo ainda voltar a estudar.
Foi o estudo que me ajudou a crescer, embora o que mais me ajudou foi descobrir que nós somos pobres, não porque Deus quis, mas porque alguém nos pôs pobres.
Que dizer, filho de rico já nasce para ser patrão, é por isso que antes de nascer já tem sua babá. E o filho do pobre já nasce sem terra para poder trabalhar, para poder ser mandado. Descobrir isso me deu mais força.
Eu acho que uma mudança de classe acabaria com essa diferença. Defendo o socialismo, embora eu não saiba como poderia ser, porque a gente só vai ver o socialismo com a caminhada, mas eu creio que o mundo melhora com o socialismo.
Em termos de ocupação de terras, eu penso que as ocupações que tivemos aqui na região de Londrina, entre meados e final dos anos oitenta, é o seguinte: todas essa ocupações não foram tão difíceis, já nas ocupações que eu acompanho no Sudoeste do Paraná o pessoal tem passado semanas sem comer, tem morrido crianças de fome.
Os bóias-frias têm passado muito mais fome do que o pessoal que ocupa terras, porém sempre têm tido vários tipos de apoio, como por exemplo, movimentos de Igreja, professores, vários grupos de movimentos que se juntam e levam comida.
Os bóias-frias, como estão dispersos, sofrem muito mais esse tipo de miséria do que o pessoal que está lutando pela terra. E outra coisa também, é que para poder trabalhar na organização o bóia-fria tem dificuldades de administrar sua propriedade, depois de conquistar a terra.
Penso que é importante, falar um pouco da minha caminhada aqui na região Norte do Paraná. Ela começou quando viemos para Londrina no ano de 1974. Chegando aqui foi muito difícil e acabamos morando numa favela e ainda não tínhamos o costume de trabalhar de operários.
Depois o meu marido começou a beber e por causa do alcoolismo não conseguia nenhum emprego. Foi difícil.
Com o tempo comecei a conversar com o pessoal e entrar na associação de bairros e daí eu passei a perceber que quando a gente morava no sítio havia isso e aquilo e observei que o pessoal da favela era trabalhador rural.
Sou migrante de Minas e em 1954 quando chegamos no Norte do Paraná, eu tinha 5 anos. A gente veio direto à região de Londrina. Meus pais e meus irmãos participaram da desmatação daqui e aí trabalhamos no plantio do café e do pasto.
Lembro que em Minas, desde que meus bisavós vieram de Angola na África, ficamos numa fazenda em Ponthalete, município de Três Pontas, em Minas Gerais. Quando morreram meus avós, os filhos ficaram com o dono da fazenda, em semicativeiro.
A minha mãe era quem fazia farinha, meu pai fazia pinga e a minha mãe ainda amamentava os filhos da patroa.
Eu me lembro um pouquinho deles, dois meses após a patroa engravidar a minha mãe devia ficar grávida, assim podia amamentar os filhos do patrão e para nós tocava o leite de cabra.
Quem mamou meu leite se chama Tais e dizem que é advogada. Eu tenho vontade de conhece-la.
Eu diria que fui nascida e criada em cativeiro.
Naquela época de Getulio Vargas, começou a sair a propaganda no rádio, de que o Paraná era melhor e meu pai ouvia muito falar “da Companhia de Melhoramentos”, e ele começou a pensar em vir para o Paraná. Assim ele foi conversar com o patrão, João Marcelino, que falou:
- O que eu posso te dar são 5 mil réis.
O dinheiro é para poder comprar alguma coisa para nós comer na estrada, sendo que toda a riqueza que o patrão tinha havia sido produzida pela minha raça.
Foi isso e mais uma galinha. Com ela fizemos um virado e embarcamos no trem de ferro para a região de Uraí, a colher algodão.
A gente não conhecia o algodão, e não conseguimos sobreviver, assim terminamos vindo para Londrina e aqui desmatamos matos e plantamos café.
Esse era um trabalho que a gente sabia fazer, ficamos como colonos pegando por 4 anos a empreita. A terra que estava com mato, derrubávamos e plantávamos café. Quando venciam os 4 anos devíamos sair para procurar uma nova empreita.
A minha família que veio dava um grupo de quase 30 pessoas, que tinha um nome. Porque todo grupo negro tem um nome. Inclusive em Coqueiral, em Minas Gerais, ainda existem primos meus que são desse grupo dos condongas, do qual eu formo parte.
Esse nome é africano e vem dos meus avós paternos Malaquias e dos meus avós maternos Condongo que, quando chegaram ao Brasil jamais diziam esses nomes, mas agora acabou.
Aqui no norte do Paraná o que dominava era nortista e durante muitos anos plantamos café, assim arrancávamos o café para plantar pasto. Ficamos como andarilhos, andando de uma fazenda para outra. Com todo esse trabalho conseguimos comprar 4 alqueires de terra, só que com o câncer do meu pai, a gente teve que vender tudo e aí ficamos sem terra.
Continuamos com o trabalho de arrendatário, mas chegou um ponto que não tinha mais terra livre, porque tudo era pasto e gado.
Em 1976 eu já era casada e tinha os filhos, foi quando viemos para a cidade. O marido agricultor, todos nós agricultores. Foi muito difícil. Lembro que trabalhamos três anos de doméstica, de bóias-frias, de tudo, só faltava roubar. Fazíamos tudo quanto era serviço para sobreviver.
A gente ficou desesperada quando o marido dói internado no sanatório, isso aconteceu em outubro de 1983, as crianças eram pequenas e somente eu para sustentar a família. Foi nesta época que encontrei um boletim, bem no centro da cidade que dizia assim:
- Movimento dos sem-terra máster, movimento dos sem-terra do Sul do Norte.
Quando eu olhei aquele boletim eu pensei assim:
- Oh!!!, é isso que eu quero.
A gente já conhecia um pessoal que era de uma tendência do PT, era o pessoal do PCB. Os conhecia porque eles já atuavam com a gente na favela e corri atrás deles e levei aquele boletim e disse:
- Dr. Arnaldo é isso que eu quero!!!
Ele olhou e disse:
- Você não quer isso, porque você é doméstica, isso é para pessoas da terra.
Eu disse:
- Eu sou doméstica porque eu não tenho terra.
Com aquele boletim em mãos eu fui para a favela e comecei a falar com as pessoas, com 15 dias a gente já havia formado 3 grupos de Sem-Terra em 3 favelas, então, com aquilo eles disseram para conversarmos com um tal de padre Nilo. A partir daí começamos a conhecer o Movimento Sem-Terra.
Aqui a gente não fala em camponês, esse termo é mais a nível teórico. Bóia-fria se considera bóia-fria mesmo e não camponês. Mesmo lá no campo, o pequeno proprietário não se considera como tal. A palavra camponês não é bem vista entre os trabalhadores rurais.
Mas, a partir do encontro que realizamos em janeiro de 1984, na cidade de Cascavel, foi que eu comecei a perceber que aquele movimento era muito maior do que eu enxergava. Eu acreditava que era um negócio assim pela necessidade. Eu jamais pensava que podia ter um envolvimento político geral tão grande. Assim eu já comecei a conhecer e assumir tarefas, nesse mesmo ano organizamos uma assembléia regional, do movimento dos sem-terra do Norte do Paraná, no dia 10 de maio de 1984 e participaram mais de 300 pessoas. O movimento no Estado já estava coordenado, havia um entrosamento e a partir disso no dia 9 de agosto, do mesmo ano, organizamos a primeira ocupação de terra aqui em Londrina. Era uma área que ia ser uma penitenciária agrícola e estava abandonada a 6 anos.
No final daquele ano, lembro bem que, houve outra ocupação de favelados nas terras da COAB aqui em Londrina e em União da Vitória. Também por falta de experiência e melhor distribuição, o movimento ficou sendo conhecido mais como movimento urbano dos sem-casa do que dos sem-terra. Já em 1985 houve outra ocupação da qual eu também participei, nas terras da COAPAR em Rolândia, com o movimento dos bóias-frias e favelados, que também não conseguiram estruturar suas forças e as famílias após caminhadas e procuras acabaram se dispersando.
É também importante dizer que no final de 1986 houve a luta das 130 famílias de Apucaraninha, as quais moravam em São Gerônimo da Serra, onde eram ocupantes posseiros na terra dos índios. Essa luta foi muito grande, foram dois anos para se conquistar o assentamento Apucaraninha que hoje está bem estruturado e as famílias que lá vivem estão em boas condições de vida.
Depois, no final de 1988 houve uma outra ocupação, também de favelados de Londrina que foi na fazenda de Pari-Paró, só que esta fazenda já estava desapropriada para o assentamento de Apucaraninha. Lembro que houve um acordo e esse pessoal afastou-se da área e dois anos depois ocupou a fazenda Santa Teresa. Esse pessoal fez uma boa luta, uma boa caminhada e eles ocuparam a prefeitura várias vezes, pegaram ônibus e tudo.
Também juntamente com o trabalho da Comissão Pastoral da Terra, os agricultores conquistaram o assentamento Serraria. Eu acompanhei todo esse movimento, não só como militante, mas também como primeira suplente de vereadora, em Londrina, pelo PT.
Essa época foi muito importante, porque descobrimos a mentira ideológica da hierarquia evangélica, a gente não fala só de uma Igreja, todas as igrejas que dizem que Deus não está aqui, eu até os 38 anos tinha medo do pecado, do diabo, assombração, de repente comecei a ver isso de maneira diferente, quer dizer, eu acredito não num Deus lá em cima, mas em um Deus que caminha junto com a gente, com a verdade.
Com a ida do MST para Brasília, em 1986, descobri também que quem nos oprimia era o PMDB, foi aí que eu senti vergonha de defender tanto aquele partido, e então eu assumi o PT, pois é o único partido que está ao lado do trabalhador e isso foi muito importante pra mim, foi aí que eu renasci com 38 anos.
Parece que até os 38 anos eu não conseguia ver o mundo como vejo agora, foi tarde, mas estou aí na luta, acho que jamais deixarei de lutar”.

A segunda História: Ireno Alves dos Santos

Ireno Alves dos Santos analisa a conjuntura do movimento de luta pela terra no Brasil e afirma que agora a grande imprensa e os meios de comunicações de massas trouxeram outra vez a questão da luta pela terra às primeiras páginas dos jornais.
É porque, sem dúvida nenhuma, a própria recessão e a própria crise que estão abatendo o país têm colaborado e muito para o aumento do desemprego, como também com o fato de pequenos agricultores estarem perdendo suas terras e acabando nas cidades, muitas vezes ficando na marginalidade. Tudo isto tem aumentado significativamente o potencial do movimento para organizar as ocupações e, então na verdade, se fôssemos ver hoje, o País está num momento importante para que a esquerda possa avançar.
O nosso grande desafio é como melhorar o nosso método para trabalhar com o pessoal que não está mais na roça, que está à beira da cidade. Se você observar os grandes centros urbanos hoje, pode ver um número de desempregados e ex-trabalhadores rurais que ali estão e se você fizer uma pesquisa, veria que o número de interessados em voltar para o campo é muito grande.
Eu acho que sem dúvida nenhuma estamos num processo muito interessante para podermos avançar.
Eu penso também que uns dos problemas que existem, é que a nossa esquerda brasileira é muito complicada e muito dividida. Ela balança muito fácil por qualquer coisa e não estamos conseguindo aproveitar este momento.
Mas sem dúvida nenhuma para nós do MST, depois do Terceiro Congresso Nacional do Movimento, nós conseguimos dar um salto, uma animada na nossa militância e como resposta estão aí as preocupações a nível nacional. Podemos ver acontecendo grandes ocupações, como é o caso de São Paulo e de outros estados brasileiros.
Todo esta movimentação também nos mostra que temos dois inimigos declarados, sem contar com o terceiro que são os próprios fazendeiros e entre um deles está o próprio Estado com o seu aparato repressivo, coordenado pela polícia. Vale lembrar o que aconteceu em Corumbiara e também no Paraná. Isso quer dizer que a União e os Estados têm demonstrado incompetências em fazer a Reforma Agrária. Quer dizer, que o Fernando Henrique Cardoso se comprometeu no programa de governo que iria assentar 40 mil famílias e até agora se pegarmos as áreas desapropriadas ainda no tempo do Itamar, não dá para assentar 15 mil famílias.
O segundo inimigo que nós temos é o judiciário, que se demonstra muito incompetente em sua responsabilidade, portanto esse é um dos inimigos declarados que nós temos. O Terceiro inimigo são os fazendeiros que se armam contra nós e dizem que nós é que somos violentos. Mas a própria imprensa está mostrando o arsenal de armas e a organização deles para tentar impedir que os trabalhadores conquistem seus direitos.
Como dizia, vejo que foi no Terceiro Congresso que nós conseguimos avançar muito. Porque na verdade a Reforma Agrária não interessa apenas aos Sem-Terra, pois com uma família assentada no campo está se tirando uma família da cidade e lá ela poderá produzir. Está claro para a sociedade que com a realização da reforma agrária nós vamos diminuir com certeza o desemprego.
Os Sem-Terras têm chamado todas as organizações e os partido políticos para que se somem a nós para irmos juntos, numa união forte, conseguir de vez a realização da reforma agrária, porque estamos convencidos que a reforma agrária interessa a toda a sociedade brasileira.
Tudo isto nos coloca numa responsabilidade bastante grande: a de conduzir a luta do campo, a luta da reforma agrária no nosso país. O processo de fato nos converteu numa referência nacional, isso porque na verdade, com todas as crises ideológicas que a esquerda tem passado, nós do movimento nunca vacilamos em relação à reforma agrária.
Nós não temos vergonha, não temos dúvida nenhuma em assumir de cara a nossa bandeira socialista e lutar por isso até o fim. Isso também nos tem trazido uma grande responsabilidade na atual conjuntura. Várias organizações têm tido dúvidas no rumo a seguir, nós, porém não temos dúvida alguma, o que nós queremos é a reforma agrária, é a construção do socialismo. Queremos mudar este país.

A terceira História: Verônica

Sempre fomos uma família pobre. Meus pais sempre trabalharam na roça e éramos uma família bastante numerosa. Tivemos dificuldades, falta de roupas, calçados. Praticamente não tínhamos nada em casa. Que bom seria se a gente tivesse a roupa que meus filhos têm hoje. Quando criança eu ia de pé no chão para a escola e muitas vezes a professora nos mandava para o sol para esquentar, porque não suportava ficar na sala de aula passando frio.
Praticamente sempre foi assim. O plano de meu pai era comprar terra, sempre comprar terra. E nós sempre trabalhando na roça. Quando eu tinha dez anos, compramos uma terra que era do Estado, isto no Rio Grande do Sul. E somente tínhamos os direitos dela. Nisso chegou uma certa época que o pessoal falava do Paraná e o meu pai começou a querer vender a terra porque já estava meio fraca e os granjeiros estavam tomando conta das melhores terras do Rio Grande do Sul e somente sobrava para o pequeno agricultor terra ruim, de pedra.
Assim começou arrumar negócio. Fechando negócio no município de Capanema. Viemos e moramos em três famílias num porão. Era um montão de crianças e todas íamos juntas a trabalhar na roça. A minha mãe que já havia sofrido e ficado desesperada com a vinda para Capanema, quando voltou a ver que as coisas faltavam, entrou em crise. Aí o pai vendo tudo isto tentou arrumar uma terra para a gente morar de agregados e foi aquele sacrifício. Ele ia cedo e só voltava de noite. Tudo isto pra plantar um feijão que a queimada matou.
Assim, perdemos novamente o nosso trabalho e o pai foi para Planalto tentar arrumar uma outra terra e voltar a plantar de agregado. E fomos morar num biribinho de dois metros quadrados de chão.
Foi nessa época – 1972 – que eu tratava do gado alheio para ganhar o leite. E durante este ano com a madeira serrada fizemos uma casinha de cinco por quatro com telhas, isto num meio de uma capoeira. Na nossa roça havia frutas de laranja e mamão. Mas trabalhar até de noite, até enquanto nós enxergávamos. Assim, fomos trabalhando, até que um dia saiu um brique – negócio – pela terra e assim meu pai foi para Realeza a fazer o contrato. Foi duro, até que nós conseguimos pagar aquele dinheiro, trabalhando direto na roça. Toda criançada e até a mãe grávida.
Ela teve uma menina que acabou falecendo e ficou treze dias no hospital. A partir dali o pai se levantou um pouco, só que nós éramos dez irmãos e começamos a ficar grandes. Compramos maquinários, tudo financiado no Banco. Enquanto isto, nós trabalhando.
Só que no momento de sair de casa, ele foi desconversando o que havíamos construído com nosso trabalho, falando porque eu não me casava com um cara que tivesse tudo e que só faltasse pôr a mulher para dentro de casa.
Ao final ele disse:
- Se você quer casar com esse teu noivo que é pobre, pode casar, só que eu não vou te dar nada, nem casa, nem terra.
A gente ficou numa pior. Porque meu pai sempre falou que para os filhos homens ele ajudaria a comprar terra, mas filha mulher que casasse, era carta fora do baralho. E o homem que quisesse casar com sua filha devia comprar de pinico para cima.
A minha vida com meu pai sempre foi trabalhar direto na roça. Quando eu saí de casa, ele estava bem de vida. Havia duzentas e poucas cabeças de criação, milho, feijão, arroz. Tudo que eu ajudei a plantar e a criar. Mas como eu era filha mulher, não ganhei nenhuma cozinhada de feijão, de arroz. Nenhuma lata de banha ou um porquinho para começar a criar. O único que eu levei foi uma novilha que a mãe me deu e tivemos ainda que tirar escondida.
Assim comecei a minha vida de casada. Fomos embora para Capitão e fizemos uma casinha em cima da terra do sogro e ali moramos por dois anos. Arrendávamos também uma terra de uma viúva com três alqueires, que ficava a três quilômetros de casa. Logo fiquei grávida do piá e trabalhava direto na roça. Meu companheiro falava que eu não fosse e dizia:
- Onde é que se viu mulher, eu mando ficar em casa e você não me obedece?
Mas eu fui criada naquele sistema, a semana inteira na roça, nem ficava para fazer a limpeza da casa.
Daí plantamos nessa terra por dois anos e meu primeiro filho nem pude cuidar. Não é que eu não quisesse, a verdade é que não tive tempo, somente dava de mamar no meio dia e de noite.
Saía cedo para roça e às vezes voltava a noite. Ficava lá direto, com os peitos inchados e o nenê chorando em casa, enquanto a sogra cuidava, e eu na roça trabalhando.
O sogro vendeu aquela terra e nós tivemos que sair. Fomos morar em outra e nela fizemos pasto. Plantamos milho e continuamos um sofrimento que nossa! Dessa vez que a minha mãe veio nos buscar, dizendo que o pai havia comprado mais um pedacinho de terra e que como nós estávamos vivendo a vida, aquilo não era vida.
Voltamos para Planalto. Nessa época, eu já tinha o Márcio e a Márcia. Mas eu estava acostumada a ir sempre na roça porque sempre havíamos morado perto do sogro e da sogra que cuidava sempre das crianças. Mas agora todos ficavam longe e eu passei a ficar nervosa porque meu companheiro estava sozinho na roça.
Assim fui arrumando tudo que precisava na casa. Limpei tudo em volta. Fizemos chiqueiro e galinheiro, isto tudo num mês. Mas o pai que morava a quatro quilômetros dali, começou a ficar muito enérgico, a querer mandar em casa. Quando chegava uma visita, ele chegava a dizer:
- Vocês podem ir trabalhar que eu vou conversar com a visita.
Mas a gente já não estava acostumada a ser mandada como antes. Em dois meses a coisa havia piorado e foi quando veio o meu sogro e ofereceu pagar nossa mudança para Capitão. Márcia tinha trinta dias, nem havia terminado minha dieta.
Começamos tudo novamente. Meu companheiro foi arrumar uma terra com um primo e durante o primeiro ano fizemos roa de milho e colhemos dez sacos de milho e muitas vezes as crianças chegaram a dormir sem janta.
Eu já estava grávida do terceiro filho. Eu não gosto nem de lembrar o que a gente passou lá.
Esse primo dele levava tudo no caderno. Nós trabalhávamos por hora e se nós terminássemos um serviço em cinco horas num dia, ele anotava as que faltava para completar um dia inteiro e dizia para meu companheiro:
- Pedrinho, você ficou me devendo tantas horas de serviço hoje.
Nesse sofrimento todo, conhecemos um cara do Sindicato. Ele nos orientou para que se nós quiséssemos um pedaço de terra, nós poderíamos participar de umas reuniões nas quais se discutia a questão da reforma agrária. Chegamos a conclusão e até brigamos muitas vezes com meu companheiro porque eu queria vir um pouco para o movimento e ele não queria. Mas fomos participar de duas ou três reuniões. E tudo foi meio rápido. E partimos para a luta.
Quando chegamos aqui, vindos de Guarapuava, tentávamos uma espiadinha, porque nós viemos em caminhão de lona e somente enxergamos na estrada capoeira e mato. E chegamos aqui nesta área.Lembro que nós nos arrumamos juntos com o grupo de Capanema porque nós éramos só em três famílias de Pérola do Oeste. A vinda foi no dia cinco de agosto e ficamos esperando o caminhão na beira do asfalto. O caminhão ao vir, deu sinal de luz, mas nós ficamos em dúvida. Ficamos para trás.
Assim, quando chegamos no acampamento, já havia muitas pessoas.
Em casa ficaram todos chorando. Foi uma choradeira só, que não ia dar certo, mas nós estamos aqui.
Quando o caminhão chegou, o pessoal descarregou as mochilas e nos juntamos ao grupo do Célio e fizemos nosso barraco. Ficamos seis meses junto com este pessoal. O lugar ficava perto de um banhado na parte baixa da área.
O Célio falava que teríamos que ser rápidos, sair todos do caminhão e organizar os barracos. Quando isto aconteceu, os que estavam próximos da varanda do caminhão tentaram pôr-se de pé, porém não conseguiam. As pernas não respondiam e terminavam caindo. Sequer se escutava risadas. Os pistoleiros estavam à espera. Devíamos sair e correr. Não escutamos tiros e, se houve, não nos demos conta. Era uma desordem. Ninguém sabia direito o que fazer. Passadas algumas horas, os caminhões com as coisas de casa e trabalho começaram a chegar, ao mesmo tempo que fileiras de outros, com os sem-terra, entravam no acampamento.
Outros, no entanto, procuraram diferentes meios para vir até a área.
Vieram para Cantagalo após reuniões no Sindicato de Medianeira na presença do Presidente do Sindicato de São Miguel do Iguaçu, o sr. Miguelzinho, o qual dissera que havia uma área desapropriada pelo INCRA, no município de Cantagalo, sendo que, por não terem condições de vir, solicitaram auxílio do Padre Jorge e da Irmã Ernesta, como também da Prefeitura Municipal de Foz do Iguaçu. Com os recursos arrecadados se dirigiram até o Município de Cantagalo, na área pré-determinada.
Fizemos um fogão e cozinhávamos fora. Era um fogão de barro.
Algumas famílias começaram a desistir e nós firmamos o pé desde o início. Durante vários dias, foram centenas de pessoas em movimento. Mais caminhões chegando e outros saindo com os que desistiam. Não são todos que conseguem suportar as condições do início da ocupação.
Na ocupação, mais ou menos trinta por cento dos acampados não tinham o que comer. A nossa condição era tão precária, que nem podíamos tomar banho. Os doentes não tinham assistência médica. Vinte e duas crianças morreram e um dos companheiros foi assassinado pelos pistoleiros.
As noites na área, iluminadas pelas fogueiras, sempre trazem consigo a possibilidade do ataque dos jagunços. Somente as crianças conseguiam dormir de cansadas de tanto brincar, enquanto os adultos montavam guarda e contavam as estórias da luta e pensavam em voz alta nas possibilidades de um futuro que estavam construindo.
A medida em que chegavam as famílias, os grupos começaram a se formar: primeiro pela proximidade dos municípios e por relações de parentesco; eram amigos, primos, irmãos e muitos desconhecidos, gente que nunca se tinha visto até agora, mas que compartilhavam em comum o estar naquele lugar. As primeiras providências que os mais experientes tomavam foi organizar a administração da área. Uns se propuseram a fazer a guarda, para se protegerem dos pistoleiros que rondavam. Outros foram cuidar da saúde, e assim por diante, educação, horta e cozinha.
Em cada um desses setores, uma comissão de assentados para administrar, escolhidos na assembléia, da mesma forma que a comissão mais importante: a de negociação, pois sem ela a consolidação da área não existiria. Naquela comissão estavam os líderes dos grupos, com capacidade de exigir dos responsáveis, providências na regularização da área para projeto de Reforma Agrária.
Lembro-me que numa assembléia fui escolhida e assumi como coordenadora de saúde. Lembro também que no nosso grupo havia uma velhinha que ficou doente e “levamos ela” para Inácio Martins e quando chegamos lá, o médico se recusou a atendê-la e mandou ir para Guarapuava. Tivemos como esta muitas outras situações. Éramos muitas famílias e vinha gente de todo tipo e de todos os lugares. Durante os primeiros dias foram escolhidas as lideranças através das assembléias: o pessoal da executiva, os negociadores e nós tivemos muitos cursinhos. Nestes cursinhos eu fui aprendendo sobre saúde.
As assembléias começavam cedo todos os dias. As primeiras informações se referiam à estrutura interna do acampamento e às alternativas para os trabalhos do dia. A disciplina na área era rigorosamente respeitada, porém nada era perfeito.
Num daqueles dias, Lorival, um senhor de uns 41 anos, tinha saído três vezes na semana para procurar gás. Como a saída requeria passar pelo portão da área, começou a chamar a atenção. Será que consome tanto gás aquele homem? Era a pergunta que ficou no ar. No final de uma daquelas semanas, ele ia em direção à quarta saída e a vigilância não conteve a curiosidade:
- Escuta, que tanto gás procura o senhor?
A resposta não se fez esperar. O butijão de gás estava adaptado para transportar um líquido branco e perfumado elaborado a partir da cana. Rapidamente o senhor Lorival reconheceu a sua esperteza e deixou, na entrada, a sua garrafa. Durante os dias seguintes, uns bambus tinham sido reconhecidos também com o mesmo fim.
Na assembléia se acordou que a bebida devia ser muito controlada, pois com tanta gente junta, o álcool podia trazer alguma desgraça. O acordo foi geral e durante meses não se viu desfilar cachaça pelo acampamento. O chamado à ordem foi feito também para os engraçadinhos que gostavam de mexer com a mulher dos outros, uma prática dissimulada.
O esquema de segurança previa o aviso com foguetes, quando alguma coisa grave fosse ocorrer, principalmente se a polícia viesse cumprir uma ordem de despejo. Os códigos estavam estabelecidos e como era uma possibilidade, os sinais foram decorados imediatamente. Num sábado, ao meio dia, uma das guardas, a que estava mais próxima do acampamento, escuta um estouro de três rojões. Aquilo era o sinal da chegada das forças policiais. Imediatamente se seguram mais dois estouros, parecia a confirmação do fato. Alcebíades correu, dando gritos em direção ao acampamento e as pessoas começaram a se preparar, uns se escondiam debaixo dos colchões, outros foram cortar taquara para defender a área e todo o acampamento se enfileirava em direção ao que tinha sido estabelecido: proteger a primeira guarda e defender o local.
Durante vinte e cinco minutos, mais de 1.600 pessoas se mobilizaram num caos que não se entendia. Na subida que dava até o local da entrada, centenas de homens corriam, outros desciam à procura de algo que tinham esquecido e era importante para se defender da polícia, que, segundo experiências, chegava batendo para valer. Passada já meia hora, ninguém da primeira guarda desceu para confirmar o número de policiais que vinham, ou como vinham. Três homens subiram até o local, distante uns 1.500 metros, onde estava instalada a primeira guarda. Quando chegaram, viram que estes não se tinham inteirado de nada, somente que estava havendo uma festa de matrimônio perto de Sobradinho, e era uma festa e tanto, porque estavam estourando até foguetes.
No domingo ainda não se tinha encontrado o apressado que provocou a correria de todos. Até hoje é um segredo.
Na cidade, dois meses e meio depois de nossa ocupação, a palavra “sem-terra” era ainda sinônimo de invasão e violência. Exemplo: um caminhão lotado de trabalhadores bóias-frias voltava, ao final da tarde, aproximadamente dezenove horas, em direção ao povoado. Não era comum que retornassem tão tarde; em geral, o horário era às cinco e trinta. Sem conhecer a situação do caminhão, um garoto que fazia o caminho da escola até a casa, a pé, se viu surpreendido pelo veículo com tantas pessoas que ele, imediatamente, associou aos sem-terra e às promessas de invadir a cidade. Desde a ocupação, em várias oportunidades, os acampados em massa fizeram manifestações em frente à Prefeitura para exigir atendimento no hospital.
O garoto passou na madeireira que fica no caminho da sua casa e contou o que viu ao encarregado, que imediatamente comunicou a situação para a polícia, na cidade: ‘os sem-terras estão indo para invadir e saquear a cidade’. A notícia chegou à casa do prefeito, que ligou para o padre, ao mesmo tempo que a polícia entrava em contato com a escola.
As aulas foram suspensas aos gritos, algumas pessoas que tinham carro saíram em direção oposta de onde vinham os invasores, deixando fora da cidade os veículos. Nas ruas, os alunos corriam para as casas e os professores se apressavam em fechar a escola. Nas casas, do centro da cidade, todas as luzes foram apagadas, a cidade ficou na penumbra, sequer a polícia se atreveu a manter a delegacia aberta. Em poucos minutos, a cidade morria de pavor.
O medo e o pavor não existem somente em nós que ocupamos, mas também nos outros que não conhecem a gente.
No acampamento, a escola era improvisada sob a lona preta e tinha começado a funcionar com três turmas, com professores do mesmo acampamento. Três mulheres que tinham alguma instrução, uma a quinta série e as outras duas a terceira, se ofereceram para a atividade. As crianças, pela manhã, entravam alvoroçadas sob aquela lona, que era a escola. Alguns materiais tinham sido doados por padres e irmãs da região e outros pertenciam às próprias crianças.
Veja o que diz este material da Comissão Pastoral da Terra sobre nossa situação. Eu vou comentar.
No começo do ano de 89, pistoleiros assassinaram a tiros um pequeno agricultor que mantinha amizade com os ocupantes da fazenda. Em março do mesmo ano, os pistoleiros voltaram a agir, desta vez assassinando também a tiros o motorista Ezequiel de Oliveira, da ervateira Bonatto, que transportava erva mate colhida pelos Sem-Terras. Em abril do mesmo ano, o quadro se agrava ainda mais. Há ameaças de morte para as lideranças dos Sem-Terra, inclusive para agentes de pastoral e da Igreja. Em maio de 89 os pistoleiros voltaram a atacar ateando fogo a um caminhão que estava a serviço dos acampados. Em agosto, os pistoleiros seqüestram 3 sem-terras e 2 motoristas, além de prenderem 2 caminhões carregados de palanques e 1 ônibus que trazia passageiros de Laranjeiras do Sul para a ocupação. Maltrataram seus passageiros e o motorista, inclusive batendo em mulheres e crianças.
No dia 31 de janeiro de 1990, os pistoleiros prenderam mais um motorista que transportava alimentos, soltando-o depois de conseguir a promessa de que voltaria para o seu local de origem. Em maio de 90, foram presos e espancados brutalmente 3 acampados que voltavam de seu trabalho, com compras. No dia 7 de julho, 40 pistoleiros fortemente armados voltaram a atacar as famílias. Entrincheirados, eles permaneceram atacando desde a madrugada de sábado até o cai da noite de Domingo. Balearam João Maria Ribeiro e assassinaram José Dias. Os pistoleiros, portando armas pesadas, foram trazidos do Mato Grosso e outras regiões, numa ação articulada pelas Cia. Pinheiro Indústria e Comércio e pela TERPLAN. Esta última estava contratando seus pistoleiros em Curitiba, na sua própria sede, por 20 dias de serviço a um preço de quarenta e cinco cruzeiros para fazer o despejo. O delegado de Polícia Sebastião Toborda e o Prefeito Pedro Ivo, de Inácio Martins, foram coniventes e incentivaram aqueles atos já que transportavam, instruíam e permitiam a livre circulação dos pistoleiros.
Só que a grande parte da miséria do acampamento foi causada por um batalhão da polícia militar. Vinte dias após a ocupação, montaram guarda na entrada da fazenda impedindo que entrasse qualquer tipo de sementes, alimentação e até mesmo objetos de uso dos acampados. Com 90 dias saíram os policiais e veio então um grupo de pistoleiros com armas pesadas e atacavam para valer.
Nesta mesma época, nós começamos a fazer palanques para vender e acontecia que os caminhões eram presos, os motoristas eram torturados e os pistoleiros ficavam com a carga. Houve uma época que, para trafegar na estrada que ligava o acampamento à cidade, tínhamos que pedir ordem por escrito na firma para os pistoleiros deixarem passar.
A situação chegou a um tal extremo que até os ônibus em vias públicas eram patrulhados em busca dos Sem-Terra e os padres eram jurados de morte junto com os acampados.
Para não finalizar

A perspectiva com a qual finalizamos este trabalho é que em breve possamos ler as múltiplas histórias dos trabalhadores, e que todas elas estejam escritas em papel pelos próprios trabalhadores organizados. Assim como os livros didáticos incorporem estas narrações no material de leitura dos alunos de ensino fundamental e médio.

Referências bibliográficas
GÖRGEN, S. (1991). Uma foice longe da terra: repressão aos sem-terra em Porto Alegre. Petrópolis: Vozes.
GÖRGEN, S.; STÉDILE, J. P (orgs) – (1991). Assentamento: a resposta econômica da reforma agrária. Petrópolis: Vozes.
TONELLA, C.; VILLALOBOS, J. U. G.; DIAS, R. B. (1999). As memórias do sindicalista José Rodrigues dos Santos: as lutas dos trabalhadores rurais do Paraná. Maringá : Eduem.

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