25 novembro, 2006

Direito a moradia: um direito humano

Alberto Abraão Vagner da Rocha*
Elias Canuto Brandão**

Artigo inicialmente publicado no livro "Direito e Integridade Humana".
Organizadores: Elias Canuto Brandão, Maria Aparecida Cecílio e Marta Silene Ferreira Barros.
Maringá/PR-Brasil : Programa de Pós-Graduação em Geografia-UEM, 2002.

Introdução

A impossibilidade de pagamento de altas mensalidades da “casa própria” e os despejos de mutuários realizados em todo Brasil pela Caixa Econômica Federal e pelo Sistema Financeiro de Habitação, resultou em um bate-papo, em novembro de 2000, entre eu, Elias Brandão e o advogado Alberto Abraão Vagner da Rocha, sobre o direito à moradia.
Nossa conversa tem por objetivo compreender como se dá e por que ocorre a violação do direito à moradia contra os cidadãos. Aqui está uma contribuição riquíssima, em forma de bate-papo, a todos que dependem, devem ou pagam a casa própria através de financiamento bancário e que passam dificuldades de pagamento, quitação ou negociação com os órgãos representativos do governo municipal, estadual ou federal.
Procuramos, como resultado do descontraído bate-papo, levantar algumas informações, orientações e noções mínimas sobre o direito à moradia, infelizmente desrespeitado pelos diferentes governos – sobretudo o Federal – e por seus órgãos representantes – o Sistema Bancário e o Sistema Financeiro de Habitação.
A partir deste momento convidamos o leitor a acompanhar e a participar do bate-papo. Alertamos que nem todas as dúvidas serão contempladas na conversa, mas tentamos dialogar com as informações básicas.

O bate-papo

Elias Brandão = Alberto, é possível fazer uma abordagem geral sobre o direito à moradia?
Alberto Abraão = É possível. O início, vamos dizer, a gênese do direito à moradia, está nos primórdios dos tempos.
A questão da moradia está diretamente ligada à necessidade de segurança. Segurança em sentido amplo. O homem, a princípio, satisfez essa necessidade, utilizando-se dos recursos naturais. Abrigava-se em cavernas e outros acidentes naturais. Nesses locais estabelecia seu território, espaço inacessível aos demais. Somente o dono da área, sua fêmea, seus filhotes e seus próximos compartilhavam o uso deste bem.
Bem mais à frente, com o avanço do homem, a apreensão de técnicas e a invenção de instrumentos de trabalho adequados às suas necessidades, houve a substituição dos abrigos naturais por construções estruturadas de acordo com as exigências e possibilidades próprias da época e de cada grupo ou classe de pessoas. Nesse período, a sofisticação física também passa por uma outra segurança reclamada pelo homem: a espiritual. E que sofisticação física é esta? A casa. Esta ganha um sentido religioso. Já não é apenas uma segurança contra os animais bravios. Mas contra fenômenos da natureza que não consegue entender. As intempéries levam o homem a transformar a casa num santuário, ganhando, portanto, sentido religioso. O metafísico passa a plano mais importante que os de aspectos físicos. Cada casa tinha seu fogo sagrado. Reverenciava seus deuses, passando o culto de geração a geração. Aí está a origem de muitos ritos religiosos que até hoje praticamos sem conhecer o porquê. Com influência, inclusive, na arquitetura das casas. Estas tinham um nicho[1] na parede frontal externa, para acomodar o santo de devoção. Isto hoje se vê apenas em algumas construções no interior do país. Podemos concluir, portanto, que o direito à moradia resultou dessa necessidade de segurança composta por elementos físicos e metafísicos. Incorporou-se à personalidade humana de tal forma que se tornou instituição jurídica reconhecida por todos os povos, como direito social básico para a estruturação da pessoa humana em todos os seus aspectos.
Também poderíamos mencionar que nessas necessidades físicas e espirituais em que se amparou o instituto de direito à moradia, também é o nascedouro do direito à propriedade. As grandes discussões que se tem hoje tanto na área urbana quanto na rural, estão diretamente ligadas ao direito de propriedade. E a casa, urbana ou rural, é o espaço territorial mínimo que não se deve negar a nenhum ser humano.
Elias Brandão = É aí que surgiu o Sistema Financeiro Habitacional?
Alberto Abraão = O Sistema Financeiro Habitacional surge para satisfazer esta necessidade. Para implementar este direito de propriedade são necessários recursos financeiros. Num país como o Brasil, de dimensões continentais, apenas o governo federal não teria condições de atender. Então se buscou com o Sistema Financeiro Habitacional, estruturado a partir de 1964, reunir as ações privadas e outros projetos com recursos de todas as esferas de governo: municipais, estaduais e federal.
Com isto se pretendia estruturar uma grande fonte de financiamento. Uma fonte de recursos, alimentada especialmente pelo Fundo de Garantia e do próprio Tesouro Estatal para cumprir o objetivo. O Sistema surge daí, então.
O que acontece com o Sistema? Nasce para atender basicamente à população de baixa renda, que teria, através de financiamento habitacional, acesso a tais recursos, de forma mais acessível, com juros subsidiados, correção monetária vinculada aos rendimentos do trabalhador, de modo a satisfazer esse direito sem criar dificuldades da manutenção da família nas demais necessidades, como, por exemplo, saúde, a alimentação...
O sonho da casa própria que buscava o Sistema satisfazer, no entanto, acabou tendo distorções. Porque o Sistema acabou abrigando dois interesses divergentes: satisfazer o interesse do cidadão de possuir casa própria e, ao mesmo tempo, propiciar rendimentos aos recursos captados pelos agentes financeiros. Sabemos que interesse social e especulação financeira são incompatíveis. Estão aí para provar as questões agrícolas. O Sistema que deveria financiar a produção, priorizou o rendimento do capital. E o que aconteceu? Muitas propriedades rurais foram expropriadas pelos Bancos ou vendidas pelos pequenos agricultores para incorporação aos atuais latifúndios existentes em nossa região. Assim também aconteceu com o Sistema Financeiro Habitacional. Teria a função de financiar a construção civil, passou a garantir a casa própria, mas expropriou os poucos rendimentos dos trabalhadores aprisionados nos impagáveis financiamentos. Quando não puderam mais pagar, foram despojados de suas casas como foram os agricultores de suas terras.
E por que isto aconteceu nos financiamentos habitacionais? Ninguém poderia ter o financiamento desvinculado de seus rendimentos salariais. E teve. Aí entra a questão do salário mínimo que legalmente tem a função de satisfazer as necessidades fundamentais que é saúde, habitação, vestuário, educação..., de uma família. Virou uma farsa. Ninguém consegue satisfazer estas necessidades e sequer uma prestação mínima do Sistema. Portanto, o salário mínimo amplo e suficiente às comentadas necessidades só está na Lei.
Elias Brandão = Prestação maior do que o salário que ele recebia.
Alberto Abraão = Muito maior. Muito maior. Mas veja você o que é o Sistema Financeiro. Eu diria que, na forma atual, constitui-se em criminalidade oficial. Porque embora o Sistema preveja a vinculação do aumento da prestação ao ganho salarial, os agentes financeiros não observam esta regra. Isto porque, enquanto a prestação tem seu aumento preso ao do salário, o saldo devedor tem seu reajuste com base nas taxas financeiras, com rendimentos determinado pela TR. Essas taxas, como sabemos, sempre foram superiores aos reajustes salariais. Especialmente nos últimos anos, a partir de 94 com o Plano Real.
Elias Brandão = Anualmente o Agente Financeiro corrige o valor da prestação, enquanto o salário...
Alberto Abraão = Se fosse anualmente, a situação não seria tamanha, mas não é anual, é mensal. Os rendimentos sobre o saldo devedor são computados mensalmente. Assim o mutuário nunca consegue amortizar o débito com o valor da prestação paga mensalmente. Não consegue fazer esse pagamento porque sempre, todo pagamento realizado é absorvido só pela correção monetária.
Elias Brandão = A correção é feita em cima do saldo devedor.
Alberto Abraão = Do saldo devedor.
Elias Brandão = Para depois a pessoa pagar, se conseguir pagar.
Alberto Abraão = A dificuldade para o pagamento é determinada também, em virtude de um monopólio de seguro gerido pelo Sistema Financeiro Habitacional. Esse seguro é pago mensalmente. Absorvia mais ou menos em torno de 20 a 30% do valor da prestação e outros encargos mensais. Quer dizer, é um seguro altíssimo. Este pagamento não é contado para a amortização do saldo devedor, destina-se só para o seguro. E tem mais: há um percentual do valor pago mensalmente que pertence ao Fundo de Compensação e Variação Salarial. Fundo este que tem por objetivo o pagamento dos saldos devedores residuais que permanecem após o término do prazo de financiamento. Hoje este Fundo já não existe mais. Para quem tinha financiamento coberto pelo FCVS, havia, ao menos uma tranqüilidade, você pagava sem se preocupar com o saldo devedor, pois sabia que no término do prazo contratual estava encerrada a sua obrigação e teria a quitação do contrato de financiamento.
Elias Brandão = O que é o FCVS?
Alberto Abraão = É o Fundo de Compensação de Variação Salarial. Ou seja, significa que se seu salário subiu menos do que a prestação, então você já estava predestinado a se valer deste fundo para cobertura do valor remanescente de seu débito junto ao agente financeiro. Na verdade, o Sistema não funcionou porque os governos, tanto municipais, quanto estaduais e federal, nunca colocaram recursos do Tesouro para suprir esse direito à habitação, para satisfazer esse direito fundamental da pessoa humana. Antes incluído apenas na Declaração de Direitos Humanos, com essa origem que nós comentamos inicialmente, e hoje também inserido no texto constitucional, por meio da Emenda Constitucional 26/2000. Aí que entra o nó da questão. Hoje o Sistema tem que se adequar à exigência constitucional e a gente percebe que o Governo busca adequá-lo à Constituição. Sem, no entanto, colocar dinheiro do Tesouro. Mas chegará um momento em que esses recursos terão que ser disponibilizados pelos governos municipais, estaduais e federal. Só assim poderão cumprir este programa estatal. Não dá mais para utilizar apenas dinheiro do Fundo de Garantia, dinheiro do trabalhador, para financiar o Sistema.
Elias Brandão = Então, se o Governo não participar...
Alberto Abraão = Se não participar com recursos próprios não tem solução.
A bem da verdade, a única esfera de governo que tem participado dos programas habitacionais é a municipal, pois esta é que sente de perto o drama da falta de moradia. Os governos municipais são os únicos que entraram com recursos do Tesouro para a construção de conjuntos habitacionais. São mais sensíveis para esta questão. Organizam programas subsidiando parte do investimento com a doação de terreno e de toda a infra-estrutura, como por exemplo água, luz, esgoto e asfalto, e financiam, quase sempre através da Caixa Econômica Federal, apenas a construção. Assim o valor da prestação fica limitado apenas à construção e de acordo com a capacidade de pagamento do trabalhador. Infelizmente, poucos são os programas habitacionais promovidos pelos governos municipais, por isso em uma mesma cidade temos conjuntos sem qualquer infra-estrutura.
Elias Brandão = Esta não era computada.
Alberto Abraão = Não. Neste tipo de Programa a infra-estrutura não é computada.
Elias Brandão = E o que vinha da Caixa poderia ser super faturado.
Alberto Abraão = Dependendo de quem administra a construção pode sim, ser superfaturado. Nós temos a experiência do Programa Casa da Família que em Maringá construiu o Conjunto Requião. É um exemplo de programa realizado com a participação do governo municipal. Este subsidiou a infra-estrutura necessária e gerenciou a construção das casas utilizando a autarquia municipal responsável por obras, o SAOP, além de organizar os mutuários em mutirão.
O governo do Estado, por sua vez, intermediou junto ao Sistema Financeiro Habitacional o empréstimo dos recursos para a edificação das casas. Com isto, temos em Maringá um conjunto habitacional com casas de bom padrão de qualidade e tamanho e com prestação que se limita a vinte por cento do salário mínimo. Isto faz com que a inadimplência seja próxima de zero. Ao mesmo tempo, temos outros conjuntos, como por exemplo, o Sol Nascente, onde além da qualidade da construção desagradar o mutuário, o valor da prestação é bastante variável e se fixa entre o mínimo de um salário a dois salários mínimos.
Esta situação além do sentimento de injustiça, porque as pessoas não compreendem porque as pessoas de um conjunto habitacional possam ter uma situação favorável e, ao mesmo tempo, outro onde não conseguem pagar e são despejados.
Veja você que na comparação destes conjuntos não se pode dizer que houve super faturamento, pois grande parte dos custos da construção do Conjunto Requião foram subsidiados pelo município. Pode-se, no entanto, afirmar que com a participação do Estado, compreendendo neste município, Estado Membro e União, resolve-se com facilidade o problema habitacional no Brasil, retirando o mutuário das garras do sistema financeiro.
Não se pode impor, porém, que somente o município entre com recursos, como foi o caso utilizado como exemplo, pois o problema habitacional é de responsabilidade de todas as esferas de governo. Não é justo, portanto, somente ao município a garantia deste direito fundamental, pois outras áreas de investimentos ficariam desassistidas. Pode-se afirmar também que a gerência da construção das casas pelo governo municipal em conjunto com os mutuários evita-se a corrupção. Basta ver que as casas onde se tem alto índice de inadimplência e estão se realizando os despejos pelos agentes financeiros em comum observam-se os seguintes aspectos: foram edificadas por construtoras, sem a participação dos mutuários, os materiais utilizados são de baixa qualidade, as casas são pequenas, em alguns conjuntos são de apenas vinte e sete metros quadrados e, no entanto, o valor das prestações na média é de um salário mínimo.
Elias Brandão = Então o problema do Sistema Financeiro de Habitação, como você está colocando, não é igual em todos os locais, em todas as cidades ou regiões?
Alberto Abraão = Não, porque o Sistema como o nome revela busca organizar através de Lei as diversas iniciativas habitacionais, as experiências e projetos dos governos estaduais e municipais, estimulando a iniciativa de empreendimentos privados. Então tudo o que você quiser fazer na área habitacional o Sistema, a princípio, favorece. Eu diria que é uma hipocrisia porque ele absorve para si o crédito das iniciativas. Diz que é o governo federal que as implementou e está garantindo casas às pessoas. Na realidade não está garantindo nada. A única coisa que faz é dar acesso à iniciativa privada, às iniciativas públicas locais ou estaduais e ao fundo de garantia para captar recursos que são geridos pela Caixa Econômica ou bancos privados. Para fazer somente isto não precisaria do Sistema.
Elias Brandão = E é um dinheiro do trabalhador.
Alberto Abraão = É um dinheiro do trabalhador. O Sistema Financeiro não cumpriu sua finalidade primeira, que é assegurar acesso à casa própria para as pessoas de baixa renda e para aquelas, eu diria, em desvantagem social, as quais sequer têm renda suficiente para pagar uma prestação. Embora o Sistema tenha previsão de atendimento destes casos por um Fundo de Assistência Habitacional, foram pouquíssimos os programas dirigidos às pessoas nesta situação social. Em síntese, os mutuários tiveram apenas a cobertura do FCVS, cujo benefício somente é usufruído no final do contrato com a quitação do saldo devedor impagável. Contudo, como já afirmei, os recursos do FCVS são garantidos pelos próprios mutuários. No valor da prestação mensal pagam três por cento a mais para a composição financeira deste Fundo. Em síntese, o Governo não faz nada, quem faz são as pessoas que integram o Sistema e os trabalhadores com os recursos de seu FGTS. Justamente por este motivo o Sistema Financeiro Habitacional está falido. Porque sem dinheiro do governo não é possível garantir o direito à moradia.
Agora o governo procura renovar o Sistema. Cria um programa de arrendamento de imóvel residencial. Mas não disponibiliza recursos para subsidiar a construção e não cria mecanismos de controle dos custos destas construções.
Elias Brandão = Não mexe na estrutura.
Alberto Abraão = Não na estrutura. Esta é a mesma. Joga o cidadão para o Sistema, nos braços dos agentes financeiros. A mudança, a nosso ver, vai facilitar o despejo. Esse programa veio apenas para contornar o problema, pois com a economia paralisada e o alto índice de desemprego na nossa região, a inadimplência é inevitável.
Elias Brandão = Então, antes o Sistema Financeiro de Habitação prejudicava o trabalhador porque o governo, que se dizia participante, não participava.
Alberto Abraão = Não participava e não participa.
Elias Brandão = Isso. E os trabalhadores com um salário baixíssimo não conseguiam pagar. No primeiro momento não eram despejados e agora com esse novo Sistema piorou.
Alberto Abraão = Piorou, piorou porque a retomada do imóvel é prevista para um prazo de 90 dias. Embora haja certeza do valor mensal a ser pago durante o período do contrato, limitado a um por cento do valor total do imóvel, não atende à reivindicação dos mutuários que buscam esta limitação ao percentual máximo de vinte por cento do salário mínimo. Para os mutuários esta forma de equivalência lhes dá maior segurança por se harmonizar com a realidade por eles vivida. Com isso, não eliminariam a preocupação com o acréscimo do valor da prestação e com o fantasma do saldo devedor.
Elias Brandão = O saldo devedor é sempre maior.
Alberto Abraão = Sempre maior. Temos, portanto, um Sistema injusto. A pessoa paga até o limite de suas possibilidades. Não consegue mais pagar e é despejado sem qualquer consideração com as suas necessidades humanas. Em outras palavras, é sugado ao máximo. Mais que seus recursos financeiros, tem sua vida expropriada. É, portanto, uma forma de escravização. O sonho da casa própria para quem entra no Sistema Financeiro Habitacional se torna um pesadelo. Essa máxima de experiência está popularizada, e todos temem fazer um financiamento para a aquisição da casa própria.
Elias Brandão = Alberto, alguém participa do Sistema Financeiro e não consegue pagar. A Declaração Universal dos Direitos Humanos e a própria Constituição Federal dizem que todo cidadão tem direito a moradia assim como tem direito a educação, a saúde... A pessoa não consegue pagar não porque queira, mas porque ficou desempregada ou porque o próprio contrato, de forma camuflado prejudica o mutuário. Ele pode ser despejado?
Alberto Abraão = Não, não pode. Não pode ser despejado.
Elias Brandão = E o que fazer?
Alberto Abraão = Olha. É uma grande equação jurídica que tem que ser resolvida. Entre a satisfação desse direito fundamental e a proteção do Sistema Financeiro, porque nós vivemos sobre o domínio desse Sistema em todos os setores de nossa vida, devem prevalecer os direitos fundamentais. É o que nós comentávamos anteriormente. Que o governo tem que acabar com essa hipocrisia e encarar a situação com seriedade.
Quer dizer. Ou entra com recurso do tesouro federal, estadual ou municipal e banca essa situação de vez ou ele não vai resolver nunca o Sistema. A Lei que criou o Sistema Financeiro Habitacional garantia através de um fundo de assistência habitacional, Fundahab, o acesso à casa própria, este deve ser melhorado para permitir a permanência do cidadão em sua casa. Para tanto, o Estado tem que se humanizar e além das ações gerais, estruturar-se para avaliar os casos particulares de inadimplência. As pessoas que deixam de pagar o fazem não por desonestidade, mas por impossibilidade. E, em tais situações muitos mecanismos podem ser criados como, por exemplo, a suspensão da cobrança de prestação até que o mesmo encontre novo trabalho ou seja designado para a realização de trabalhos sociais. Benefício este com amplas possibilidades de ser implementado, pois não há dispêndio de recursos, como sucede no seguro desemprego.
Elias Brandão = Fundhab, o quê é?
Alberto Abraão = Era um fundo justamente para dar acesso às pessoas que não tinham renda, ou que essa fosse mínima. São pessoas em desvantagem social, que eram contempladas por esse fundo. Mas a previsão legal não significa necessariamente a realização deste direito. Porque poucos foram os programas estruturados para financiamento por este fundo. Poderíamos dizer que foram apenas projetos pilotos, nada mais. Só esta conclusão podemos ter, quando se atende num déficit habitacional de milhões de casas não mais que um por cento da demanda. Você encontra pelo Brasil pessoas que tiveram acesso a esse tipo de financiamento. Mais na nossa realidade local é praticamente inexistente.
Em termos legais, o Direito Fundamental à moradia fundamentava-se tão-somente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, mesmo que pudéssemos defender a recepção deste princípio pelo nosso sistema constitucional, porque é princípio básico nos Estados de Direito. Hoje, no entanto, este princípio está expresso na Constituição Federal. Isto ajudará em muito as ações judiciais contra o Sistema Financeiro Habitacional, obrigando o governo a adequar seus programas habitacionais para este direito básico, para a estruturação familiar, que é o direito de moradia.
O que temos que fazer para que esse direito seja respeitado? Realizar uma luta com o objetivo de sensibilizar o Poder Judiciário. O Judiciário tem que avançar. Além dos movimentos sociais que dão conteúdo e orientação política aos poderes constituídos, os advogados terão que buscar o aprimoramento de suas habilidades nessa área para que possamos fazer o ordenamento jurídico ser respeitado a despeito da alegada falta de recursos dos governos. Basta o governo estancar a corrupção e o dinheiro aparece.
É importante que o Poder Judiciário esteja atento e ouça o clamor social antes de assinar uma petição de despejo. É necessário ter uma visão social dessa realidade. Inclusive deveria ser informado da situação social do mutuário por assistente social. Profissional este que infelizmente ainda não integra a estrutura funcional do Judiciário. Isto impediria que o Judiciário pudesse acolher situação injusta, representada eventualmente por mutuário que, embora possa pagar, opta por não fazer o pagamento. Fora dessa situação, de eventual abuso de direito pelo mutuário, o cidadão não poderia ser despejado.
Elias Brandão = E como os juizes vêem isso? Eles tentam fazer esse conhecimento, essa busca, essa pesquisa geral?
Alberto Abraão = Alguns sim. Infelizmente nem todos fazem.
Elias Brandão = Ou eles seguem a Caixa. O Sistema Financeiro solicitou o despejo, eles...
Alberto Abraão = Atualmente está havendo maior preocupação dos juizes para tais casos, mas são iniciativas sem amparo estrutural do Poder Judiciário, como comentei anteriormente.
Elias Brandão = Não leva em consideração se a família está podendo pagar, se está desempregada ou empregada.
Alberto Abraão = Na prática, a favor do mutuário em processo de despejo, tem-se apenas a demora judicial para decretá-lo. Os juizes acabam tendo a sensibilidade de não colocar as pessoas em despejo. Despejar uma família cria um problema social muito grande. Então os Juizes acabam concedendo prazo para evitar o despejo, mas resolve-se o problema de forma indireta. Não é o melhor caminho, porque há uma legislação prevendo o despejo apenas pela falta de pagamento.
O que fazer? Temos que avançar nas discussões e enfrentar o problema de frente. Não podemos contorná-lo. Temos que buscar as teses que contemplem e assegurem os direitos dos mutuários.
Na nossa avaliação, uma das teses importantes, seria: não basta a falta de pagamento, como é um direito fundamental do ser humano, o despejo teria que ser visto só em função da condição de pagar. Não por falta de pagamento, mas a recusa de pagamento por aquele que pode e tem meios para fazê-lo. Isto pode ser avaliado a partir da possibilidade econômica do mutuário e não em função da simples inadimplência.
É assim que o sistema funciona hoje. Não pagou, determina-se o despejo. O ordenamento jurídico prevê que moradia é direito fundamental. Todas as normas devem convergir para satisfazer esse princípio e as normas atuais não estão em plena consonância com o ordenamento jurídico.
A vontade legal é de satisfazer essa necessidade. Mas a ação acaba por satisfazer, em face de leis de menor poder hierárquico, o interesse do Sistema Financeiro que vive em função dos ganhos dos recursos aplicados.
E o que ele busca? Quanto maior a possibilidade de empréstimo, maior a possibilidade de ganho. Então você tem um Sistema Financeiro, para alguns, altamente interessante.
Elias Brandão = Vive o Sistema Financeiro em função destes empréstimos.
Alberto Abraão = Sim.
Elias Brandão = O Sistema Financeiro vive da desgraça alheia.
Alberto Abraão = Da desgraça alheia. É um Sistema diabólico, viu. Por que? Como é que você vai cumprir a ordem jurídica estabelecida, com uma distorção dessa natureza? Aí é que entra a questão ideológica: você ter a disposição política de fazer cumprir a ordem jurídica. Porque a ordem jurídica é a de satisfazer essa necessidade básica e não a do Sistema Financeiro Habitacional. Portanto, não importa de quem seja o dinheiro. Se esse dinheiro é de terceiro, o governo tem que entrar com recursos do Tesouro para cobrir eventual prejuízo que o Sistema causou a esse terceiro. Busque dinheiro de todos, mas tem que entrar com recursos do Tesouro. Só não pode deixar desabrigada a família que não tenha condições de pagar. Para isso é que existe governo. Ele não pode ser indiferente a esta realidade. Ele tem que entrar com programas específicos para cumprir, prevendo todas estas situações, seja de baixa renda, seja do cidadão em desvantagem social que não tem sequer renda para cumprir e entrar no sistema. E seja também daquele de classe média, padrão mais alto que também eventualmente precise entrar no Sistema Financeiro Habitacional.
Elias Brandão = Você comentou que aí entra a ação do governo, a responsabilidade do governo. Tudo bem. E dos mutuários? Por exemplo: diante de uma situação de despejo ou de um saldo devedor que sobe demais e mesmo ele ganhando razoavelmente bem, daqui há alguns anos ele não vai conseguir pagar. Corre esse risco, sobretudo num país igual ao Brasil ou em outro da América Latina, que não deve ser diferente o Sistema Financeiro. O que fazer? Se organizar?...
Alberto Abraão = Olha. Ele pode duas coisas. Não existe evolução jurídica sem evolução política. Por que? A questão da justiça é reflexo da política. Então, inicialmente você tem que fazer a discussão sob dois aspectos. Primeiro, uma organização social para discutir o problema. Tem que discutir o problema. Para que todos os reflexos sociais da realidade sejam absorvidos pelo judiciário. E teses existem. Os princípios existem. Por exemplo: equilíbrio econômico dos contratos. Se faz um financiamento, ele não pode crescer, não pode existir mágica que faça ele ser maior do que seu ganho.
Por que? Ninguém pode pagar mais do que ganha. Então, o crescimento desse financiamento, o valor, só pode ser na medida em que o Sistema que nós vivemos também responda com ganho suficiente para a pessoa. Se nós vivemos com salário de 180 reais, e esse é o salário mínimo, não é? Então todas as outras situações têm que se adequar ao salário mínimo de 180 reais porque este é o suficiente, legalmente, para cumprir todas as necessidades, não é isto? Então, a prestação da casa tem que se adequar aos 180 reais; saúde tem que se adequar aos 180 reais; educação, tudo aos 180 reais.
Portanto, o que se tem que fazer? Todos têm que ganhar nos limites de suas necessidades fundamentais. Não se pode, um pequeno grupo, absorver a riqueza de todos, empobrecendo todo mundo, concentrando a riqueza. Só existe uma forma de distribuir riqueza no mundo de forma lícita e digna: pagar bem e reconhecer o valor da força de trabalho.
Elias Brandão = Tudo deveria ser encaixar nos 180 reais que é o salário mínimo. Isso não acontece. Quem fica com o prejuízo sempre vai ser o mutuário...
Alberto Abraão = No sistema em que nós vivemos hoje é o mutuário. Na verdade ele não faz mais do que pagar um aluguel. Por quê? Ele paga, paga, e não consegue quitar a dívida. Ele é executado, despejado e a casa fica com o agente financeiro. Nada mais fez do que pagar um aluguel, um aluguel muito caro.
Elias Brandão = Observamos que hoje os mutuários estão se organizando. Um tipo de associação. Isso pode reverter o próprio Sistema Financeiro? Isso pode dar um subsídio ou fazer com que a justiça analise melhor a situação?
Alberto Abraão = Pode, pode...
Elias Brandão = Subsidia os advogados para poder...
Alberto Abraão = Pode. Aqui tem uma história recente na nossa região, ocorrida em 89 no Paraná. A construção de casas populares de 27 metros quadrados pelo projeto Margarida, instituído no governo Collor. Grandes quantidades de recursos foram aplicadas aqui no Paraná. Por que? O objetivo era eleger o Martinez. Buscava-se mostrar que o governo federal estava com Martinez e aplicava recursos na área habitacional.
E, em 93, começou aparecer o resultado daquelas construções feitas há dois, três anos. As pessoas não conseguiam pagar a prestação da casa de 27 metros, cujo valor consumia praticamente um salário mínimo por mês. Aí começou uma organização dos mutuários no Paraná. Ela deu exemplo ao Brasil. A base da organização foi a Cohapar, através da Cohapar, organizou-se a Famopar. Indiretamente o governo do estado, na época, subsidiava as ações da Famopar e eles conseguiram dar uma pequena amostra do que a organização social pode fazer, obrigando a Caixa Econômica a renegociar o valor das prestações. Reduziu o valor da prestação, estendendo o prazo contratual. Não foi a melhor solução, mas ajudou a evitar os despejos na época.
Hoje quem participou das negociações sabe que este tipo de negociação não interessa, porque à frente o valor da prestação volta a extrapolar as possibilidade de pagamento do mutuário. E aí a história de luta passou a ser diferente.
A experiência revelou que não pagar era a melhor solução. Não pagar e guardar os recursos para quando o Sistema retomasse a casa, pudesse comprar no leilão. O mutuário, dessa forma, encontrava a redução do saldo devedor a valores condizentes com o valor real da casa e, por conseqüência, a redução do valor da prestação a limites compatíveis com o ganho das pessoas de baixa renda. Esta solução por via indireta somente foi adotada pelo mutuário, porque o Sistema, insensível à realidade, não oferecia outro caminho que pudesse resolver o problema. Por outro lado, não é também o melhor caminho, pois se, por um lado, o mutuário resolve o problema econômico, por outro é jogado para marginalidade.
Ao nosso ver é o seguinte: alguém tem que perder. Achamos que é chegada a hora de fazer um balanço. Verificar o quanto os agentes financeiros até hoje ganharam. Passar isso a limpo e verificar o quanto teriam que ganhar. Verificar a dívida de todos os mutuários. Sabemos que o Sistema Financeiro teve diversas distorções ao longo de sua história. Financiou casas de alto padrão em regiões litorâneas, esgotando os recursos destinados para a construção de casas populares. Os prejuízos do Sistema Financeiro Habitacional não podem mais ser absolvido pelos mutuários.
Elias Brandão = Alberto, valeu nossa conversa. Foi ótima. Obrigado por enquanto.
Alberto Abraão = Obrigado a você Elias, pelo bate-papo.
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* Alberto Abraão é advogado publicista em Maringá/PR. albertorocha@uol.com.br
** Elias C. Brandão é historiador, mestre em Educação e doutor em Sociologia. canutobrandao@hotmail.com

[1] Cavidade ou vão em parede ou muro para colocar estátua ou imagem.





Um comentário:

  1. Trabalho interesante. Gostei muito! Precisava ser lido por todos...Parabéns!

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