O
BULLYING NO ÂMBITO ESCOLAR: SUAS CONSEQUÊNCIAS E MEDIDAS PREVENTIVAS[1]
Andressa Carla de Oliveira
Pedagoga pela
Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR-Campus Paranavaí)
E-mail: andressa_c_o@hotmail.com
Elias Canuto Brandão
Doutor
RESUMO
O presente artigo estuda o bullying no contexto escolar, compreendendo suas consequências,
analisando o que o mesmo pode trazer de negativo na vida social, nos
relacionamentos e na aprendizagem dos alunos que sofrem esta forma de
violência. O estudo foi sustentado em pesquisa bibliográfica, buscando
apontar caminhos para a construção da chamada cultura antibullying, a fim de contribuir com a formação docente para que
se tornem mais atentos no diagnóstico e prevenção de possíveis agressões em
sala de aula e fora dela. O tema é de preocupação no contexto escolar
brasileiro e de outros países o que justifica conhecê-lo e se aprofundar
sobre a questão ser
uma forma de contribuir para sua prevenção.
Palavras-chave: Violência escolar. Bullying. Formação docente.
1
INTRODUÇÃO
Por
séculos o bullying ocorreu no
cenário escolar sendo considerado algo natural e, portanto, ignorado pelas
instituições de ensino. Atualmente, em parte como resultado gerado pela
repercussão na mídia, os atos agressivos entre estudantes ficaram conhecidos
e tornaram-se tema de estudos entre educadores, psicólogos e psiquiatras como
diferentes formas de violência velada, intencional e repetitiva praticada por
crianças e adolescentes no espaço escolar. Enquanto violência, o bullying tem causado sérios danos à
vida dos envolvidos, atingindo dimensões cada vez maiores e complexas, tendo
visto que o praticante direciona seu ataque a uma pessoa determinada e de
forma constante, levando-o a se autoexcluir do meio social onde está
inserido, gerando traumas irreparáveis na vida do indivíduo.
Por
se tratar de um assunto complexo, nossa preocupação é contribuir com esclarecimentos
que possibilitem ações conjuntas diante do enfrentamento desta problemática.
Como o bullying acaba se
evidenciando geralmente dentro da escola, ela necessita do apoio de todos
para solucioná-lo, envolvendo as famílias, os alunos e toda a comunidade em
geral.
Para
tanto, o presente artigo analisa o bullying
no contexto escolar, visando contribuir na formação docente para orientação
dos educandos no que tange aos prejuízos sociais e educacionais com a prática
desta violência.
Estudos
indicaram que a prática do bullying
entre os estudantes, quando praticado na escola e, sendo detectado pelos
educadores, pode ser trabalhado pedagogicamente em tempo hábil, resultando em
possíveis soluções pela equipe escolar. O problema é que várias situações
acabam escapando do controle das escolas, necessitando do apoio da família e
de especialistas, como psicólogos.
A
prática do bullying, apesar de
histórica, expandiu-se com a organização da sociedade capitalista, alterando
as relações afetivas, expondo os indivíduos a uma relação de competição no
nível social, no trabalho e escola, afetando diretamente dois núcleos:
familiar e escolar. O fato de os pais passarem boa parte do seu tempo
trabalhando, ausentando-se do desenvolvimento de seus filhos, gera reflexo no
comportamento das crianças e adolescentes na família e na escola, alcançando
a carência de limites, tornando-as agressivas e violentas. Trata-se da
necessidade que o indivíduo tem de se impor sobre o outro, tanto para
demonstração de poder quanto para satisfação pessoal. Sobre esta questão,
elencamos no final deste estudo, possíveis contribuições que visam a
prevenção por meio de alternativas que escola e família possam colocar em
prática, possibilitando o enfrentamento do problema.
Para facilitar a compreensão do
estudo, utilizamos a metodologia dialética para compreender a realidade
histórica e cultural dos indivíduos quando envolvidos em atos violentos,
pois, segundo Guareschi e Silva,
Ao tratar
de bullying, é importante considerar ainda uma questão fundamental: o
contexto, isto é, o quanto a cultura em que os jovens estão imersos pode
influenciar no modo com que lidam com problemas e pessoas [...]. Muitos
alunos envolvidos no bullying receberam influência cultural que eliminava
opções que não envolvessem violência na resolução de problemas do dia-a-dia.
(2008, p. 55).
Um olhar atento sobre o bullying leva-nos a perceber que as
experiências vivenciadas pelo aluno em seu meio e na sua comunidade podem
repercutir por meio de seus atos na escola, visto ser esta o espaço de maior
concentração de pessoas em idade semelhante e de procedências culturais e
ideológicas diferentes. Diante disto,
faz-se necessário promover o diálogo, a solidariedade e a tolerância frente
às diferenças, incentivando a paz não apenas na escola, mas principalmente no
ambiente familiar, uma vez que aí estão os pilares que moldam e consolidam os
primeiros conceitos de respeito, moralidade e ética no indivíduo.
Várias
teorias como de Cléo Fante, Éric Debarbieux entre outros citados neste trabalho,
nos dão suporte para conhecermos o fenômeno bullying, apesar de não existir grandes obras que tratem da
questão nas escolas e sociedade. Daí a importância de discutir a temática
para contribuir com a preparação dos educadores no seu enfrentamento, possibilitando-os
ir além da violência em si, tendo visto que a prática do bullying pode envolver questões culturais, econômicas e
políticas, refletindo efetivamente na educação.
2 O
BULLYING NA ESCOLA E SUA DEFINIÇÃO
Pessoas
que convivem ou que trabalham com crianças e adolescentes diariamente
Aos
olhos dos adultos, as crianças não têm limites. Mas num olhar atento, de
educador, constata-se ter. Falta preparo dos educadores para lidar com a
situação. E o preparo deve começar na Universidade que, nesta matéria, também
está despreparada para a formação dos educadores. Neste complexo,
presencia-se a postagem de apelidos e “sarros” das imperfeições físicas ou da
situação econômica que o outro possui, dentre outras formas de ataques
pejorativos. O problema e preocupação dos educadores é que as “brincadeiras”
estão sendo praticadas de maneiras graves e frequentes, por meio de agressões
verbais, físicas e psicológicas discriminatórias.
Dessa
forma é importante compreender a violência social nas escolas historicamente,
analisando a partir do crescente número de comportamentos agressivos entre os
estudantes, sobretudo com a expansão da revolução industrial e comercial, da
tecnologia e da mídia.
No
bojo da violência social, o certo é que o bullying
causa prejuízos a quem o sofre. Segundo Michaelis apud Camargo e Costa (2010), a palavra bully de origem inglesa, significa indivíduo “brigão”,
“fanfarrão”, “tirano”. Utilizada do verbo bullying,
possui o significado de ameaçar, amedrontar ou maltratar, onde o
indivíduo protagonista submete o outro a situações de humilhação por meio de
ameaças físicas, emocionais, cognitivas ou sociais, de forma repetitiva sobre
um mesmo indivíduo.
Como
ferramenta protetora de quem sofre vexames como o bullying, existe no Brasil, o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), documento que estabelece direitos e deveres às crianças e
adolescentes. O artigo 17 prescreve que
O direito ao respeito consiste na
inviolabilidade da integração física, psíquica e moral da criança e do
adolescente, abrangendo a preservação de imagem, da identidade, da autonomia,
dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. (BRASIL, 1990,
s/p)
Na
continuidade do resguardo do direito, o artigo 18 preceitua ser “dever de
todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de
qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou
constrangedor” (Ibidem).
O
bullying confronta-se com o ECA,
pois se manifesta através de agressões verbais, físicas, morais, materiais e
psicológicas de maneira intencional e repetida, sem uma motivação específica.
A
Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à
Adolescência (ABRAPIA), citado por Neto (2012), realizou uma pesquisa em 2002
com patrocínio da PETROBRAS em onze escolas do município do Rio de Janeiro,
envolvendo 5.875 estudantes de 5º e 8º séries, para verificar o índice de
estudantes envolvidos com o bullying.
Os dados indicaram que 40,5% desses alunos estiveram diretamente envolvidos
em atos de bullying na escola
naquele ano, sendo que do total, 16,9% eram naquele momento alvos da
violência, 10,9% foram alvos/autores e 12,7% foram autores direto de bullying. Na prática, o estudo adverte
que enquanto a sociedade se organiza para lutar pela proteção legal das
crianças e adolescentes, o que é um direito intransferível, o interior da
escola tem sido palco de violência de todas as formas contra os mesmos e que
o Estado, enquanto protetor dos direitos sociais, políticos, econômicos,
culturais e civis, não dá a devida atenção e amparo, sendo conivente com as
diferentes formas de violência, podendo ser penalizado.
3 OS
PERSONAGENS DO BULLYING E SUAS CONSEQUÊNCIAS
Existem
três personagens nesse tipo de violência: o agressor, a vítima e o
expectador. De acordo com Silva (2010), as vítimas do bullying, em geral, fogem do padrão imposto por um determinado
grupo de alunos, sendo pelo seu caráter físico, (altura, peso, imperfeições
físicas), raciais, culturais, regionais, geralmente são inseguras, e possuem
dificuldades de se expressar em grupo e na coletividade. A ausência dos
atributos trabalhados por Silva pode ser fundamentado na agressividade e na
falta de limites.
Os
atingidos não conseguem reagir aos ataques e as agressões, tornando-se alvos
mais fáceis de coagir. Como consequência,
ficam vulneráveis a doenças decorrentes das provocações, ameaças e
perseguições, podendo desenvolver transtornos do pânico, ataques de
ansiedade, angústia, depressão, anorexia, bulimia, fobia escolar e outros
problemas de socialização, podendo levar o indivíduo ao suicídio, homicídio
ou, como forma de compensação dos maus tratos sofridos, reproduzirem a
violência contra outras crianças ou adolescentes quando não tratados em tempo
hábil.
O
provocado ainda corre risco de, caso as perseguições não sejam identificadas
e tratadas a tempo, tornar-se um adulto reprodutor dos atos de bullying em seus relacionamentos
pessoais na sociedade ou escola, no mercado de trabalho ou ambiente familiar.
Silva
(2010) aponta que os praticantes podem agir só ou em grupo, provocando a
violência com o intuito de obter imagem pessoal única, passando-se por
“fortão” ou “valentão”, tendo a sensação de estar popular, demonstrando em
sua personalidade traços de desrespeito e maldade. Para a autora, o agressor
pode ter origem social em lares desestruturados e pode ser uma pessoa que não
recebeu a atenção devida quando necessitava, não conseguindo transformar sua
raiva em diálogo.
Destaca
a autora que nestes acontecimentos os personagens expectadores são partícipes
da situação ao não intervir para evitar as agressões. Podem não participar
diretamente do conflito, mas são fundamentais para a continuidade do ato,
pois testemunham as agressões e não defendem o agredido, nem se juntam aos
agressores.
A
autora coloca ainda que nestes acontecimentos os personagens expectadores são
partícipes da situação ao não intervir para evitar as agressões. Podem não
participar diretamente do conflito, mas são fundamentais para a continuidade
do ato, pois testemunham as agressões e não defendem o agredido, nem se
juntam aos agressores.
A
conivência dos expectadores tem duas possibilidades. Uma é medo de se
tornarem a próxima vítima do agressor, omitindo-se diante das agressões. A
outra é de atuarem como platéia, reforçando a agressão, rindo ou usando
palavras de incentivo ao agressor, prejudicando
psicologicamente o agressor e o agredido.
Destaca
Silva (2010) que com a ocorrência desse tipo de violência na escola, o
desenvolvimento sócio-educacional é prejudicado e as crianças podem se tornar
inseguras e tendo medo de serem as próximas vítimas, podendo influenciar nas
suas relações futuras, tornando-se adultos inseguros, visto que nem a escola
tem sido local seguro, saudável e solidário devido às diferentes formas de
violência.
Vale
lembrar que qualquer tipo de violência e, sobretudo o bullying mediante suas características e peculiaridades, resultam
em consequências e danos gravíssimos para a vida social, emocional, afetiva e
profissional de quem pratica ou sofre e, tanto
para a vítima, agressor e expectadores, as consequências são graves e negativas,
podendo ser trágica. Um texto produzido por Sidneya (2009), do Colégio
Impacto, demonstra o que estamos pontuando. Diz a missiva.
As
conseqüências afetam a todos, mas a vítima, [...] é a mais prejudicada, pois
poderá sofrer os efeitos do seu sofrimento silencioso por boa parte de sua
vida. Desenvolve ou reforça atitude de insegurança e dificuldade relacional,
tornando-se uma pessoa apática, retraída, indefesa aos ataques externos.
Muitas vezes, mesmo na vida adulta, é centro de gozações entre colegas de trabalho ou familiares. Apresenta um autoconceito de menos-valia e considera-se inútil, descartável. Pode desencadear um quadro de neuroses, como a fobia social e, em casos mais graves, psicoses que, a depender da intensidade dos maus-tratos sofridos, tendem à depressão, ao suicídio e ao homicídio seguido ou não de suicídio. Em relação ao agressor, reproduz em suas futuras relações, o modelo que sempre lhe trouxe “resultados”: o do mando-obediência pela força e agressão. É fechado à afetividade e tende à delinqüência e à criminalidade. Isso, de certa maneira, afeta toda a sociedade. Seja como agressor, como vítima, ou até espectador, tais ações marcam, deixam cicatrizes imperceptíveis em curto prazo. Dependendo do nível e intensidade da experiência, causam frustrações e comportamentos desajustados gerando, até mesmo, atitudes sociopatas. (SIDNEYA, 2009, s/p).
O
bullying é sério, porém não é e nem
pode ser considerado um fenômeno fora das possibilidades e controle. Na
maioria das vezes falta vontade política e disposição por parte dos gestores
educacionais em encarar a problemática. Encarando, há possibilidade para
reversão.
Enfim,
é necessário conscientizar o agressor sobre as consequências do que faz,
fazendo com que se coloque no lugar do agredido, mostrando a ele e à vítima
que não estão sozinhos e que com ajuda dos educadores, pais, psicólogos e
outros especialistas é possível alterar o comportamento agressivo.
4 O
PAPEL DA ESCOLA E DA FAMÍLIA
O
bullying na contemporaneidade
expande-se velozmente, tornando-se mais conhecido pelos debates e reportagens
realizados pela mídia, como a divulgação do massacre de Realengo no ano de
2011, no Rio de Janeiro, quando o jovem Wellington Menezes de Oliveira,
entrou armado na escola onde estudou por anos, atirando contra todos,
resultando na morte de 12 estudantes. O bullying,
naquela situação em específico pode ter motivado o atirador.
Casos
como este, são divulgados pela mídia, devendo assim receber uma atenção
especial por toda a sociedade, para que situações semelhantes não ocorram
noutras partes do país, ganhando espaço e notoriedade negativa na mídia,
muito mais que ações de conscientização.
As
informações, mesmo que distorcidas ou carregadas de sensacionalismo, ganham
força com o contributo da mídia, sobretudo televisiva. Por outro lado,
desenhos, reportagens, filmes, jogos de vídeo-games e seriados induzem, mesmo
que indiretamente, crianças e adolescentes a reproduzirem na escola
determinados conteúdos televisivos, resultando em agressões físicas, psicológicas
e verbais. Intencional ou não, a mídia induz as crianças a imaginar que tudo
pode ser resolvido através da violência e, direta ou indiretamente, colabora
com a agravação do bullying nas
escolas. Cabe ao Estado, por meio da instituição escola – apesar de não ser
sua função e responsabilidade principal, mas infelizmente ela não pode ficar
alheia a esta situação – e aos pais conscientizarem as crianças e
adolescentes que os conflitos não devem ser reproduzidos e resolvidos através
de atitudes violentas, do tipo “te pego
na saída” ou do “me aguarde na
saída”, mas sim por meio do diálogo e da convivência salutar.
Um
possível caminho para solucionar e/ou prevenção do bullying, é reunir a equipe pedagógica, funcionários, pais e
alunos das instituições de ensino no levantamento de situações e meios para
combatê-lo com leituras, palestras, teatros ou reportagens, pois a
instituição não pode se esquivar diante dos conflitos, ainda mais quando o bullying ocorre nos espaços internos
da instituição educativa.
A responsabilidade da instituição se
justifica, pela falha na vigilância dos menores, enquanto que a dos
responsáveis se dá em razão de sua inoperância e mesmo omissão quanto à
importante parcela de responsabilidade que lhes cabe na educação dos seus
filhos. (LEITE, 2011, p. 71).
Assim,
as instituições devem ficar atentas a tudo que ocorre em seu interior, a
exemplo de relacionamento entre os estudantes: brigas, drogas, olhar
diferenciado, silêncio exagerado, entre outros. Já os pais devem ficar
atentos quanto à mudança de comportamento de seus filhos.
Segundo
Almeida (2012), os pais só percebem que a criança está sofrendo algum tipo de
agressão, quando aparecem com marcas pelo corpo. Somente a partir da agressão
os pais procuram a escola para saber o que está acontecendo – talvez tarde demais. Descreve que as
crianças quando agredidas aparecem com vários sintomas diferentes de seu
normal, chorando excessivamente, recusando-se a ir à escola, queda no
rendimento escolar, isolamento, entre outros.
As
queixas e alterações de comportamentos podem indicar anormalidades que não
devem passar despercebidas, pois podem estar passando por situações
conturbadoras, não conseguindo falar sobre o que está acontecendo devido às
ameaças realizadas pelos agressores.
Observações
semelhantes devem ser acompanhadas junto ao agressor, seja no convívio do
agressor com sua família e sociedade, seja na escola, pois a relação convívio
e comportamentos podem influenciar nas suas atitudes. As observações podem
evitar que os agressores se revoltem e reproduza os atos contra outros.
[...] as famílias podem ajudar a
manter seus filhos afastados da violência, podem, também, socializá-los para
ela. Pais violentos podem estar contribuindo para tornar violentos os seus
filhos. Se a violência familiar pode, de alguma forma, agravar os efeitos da
violência urbana sobre as crianças e jovens, é possível que ele produz
consequências muito significativas e imediatas sobre a vida escolar [...].
(CANDAU; LUCINDA; NASCIMENTO, 1999, p. 62).
A
ausência de limites ou a falta de diálogo com os filhos, os pais acabam
deixando de lado a educação dos mesmos, contribuindo para o distúrbio
comportamental e os pais, em situações como estas, podem ser
responsabilizados pelos atos dos filhos na escola e na sociedade.
Neste
sentido, o acompanhamento permanente da família sobre seus filhos na rua, na
escola e em ambientes coletivos contribuirá para comportamentos saudáveis e
formação da personalidade. E, neste viés, tratando-se da família, o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 4°, prescreve:
É dever da família, da comunidade,
da sociedade em geral e do poder público essegurar, com absoluta prioridade,
a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
O
Estatuto deixa claro caber primeiramente à família o dever de zelar pela
formação biopsicológica dos filhos, assim como é dever possibilitar o melhor
na sua educação, acompanhando seu desenvolvimento.
5
ESTRATÉGIAS E MECANISMOS DE PREVENÇÃO
De
acordo com Santomauro (2010), algumas ações contra o bullying e outras formas de violência nos espaços educacionais
podem ser realizadas pela direção das escolas, a exemplo de medidas de
prevenção, visando solucionar esta problemática. Dentre as medidas podemos
citar:
·
A promoção de
atividades que garanta o bom relacionamento entre os estudantes, como ensinar
a olhar para o outro, visando tolerar as diferenças individuais de cada um;
·
Reunir os alunos
para falarem e desabafarem sobre seus descontentamentos, visando à formação
de um ambiente equilibrado;
·
A equipe pedagógica
e diretores devem dar o exemplo e não agirem com agressividade e
autoritarismo nas salas ou contra os colegas de trabalho, pois os alunos os
vêem como modelo;
·
Realizar discussões
e levantamento de normas sociais e educacionais entre alunos e educadores;
·
Pensar o
envolvimento do conjunto da escola: agentes, direção, professores, funcionários,
alunos e familiares e, juntos encontrarem formas de identificação do bullying e possibilidades de sua
exclusão;
·
Realizar sondagem
do bullying por questionários
anônimos, verificando o relacionamento dos alunos na escola, identificando
possíveis agressões e buscando contribuições de pistas para possíveis
soluções.
Debarbieux
(2011, p. 26), analisa que “a violência nas escolas só pode ser enfrentada se
tratada com profundidade, com formação docente específica, incentivo à
solidariedade e aumento da proximidade entre professores e alunos”.
A
ABRAPIA, citada ainda por Neto (2012), coloca algumas outras orientações para
os diretores, coordenadores e professores visando reduzir o índice de bullying nas escolas. Para a
Associação, é importante desde o primeiro dia de aula falar com os alunos que
não será tolerado práticas de bullying
na instituição, fazendo com que todos se comprometam em evitá-lo, não
praticando violência e avisando a direção caso percebam indícios de
ocorrência.
Defende-se
ainda a promoção de debates e projetos que tratem sobre o tema bullying nas salas de aula, divulgando
e fazendo que seja assimilado por todos. Aconselha-se a entidade, quando
ocorrer alguma situação de bullying,
a procurar lidar com o mesmo de forma direta, investigando e analisando os
fatos, conversando com os envolvidos, chamando sempre os pais ou responsáveis
pela criança ou adolescente para que tomem ciência e consciência do ocorrido,
levando-os a participar junto com a escola na busca de soluções. Para
Nogueira (2005),
Quando identificados um autor e uma
vítima, ambos devem ser orientados. Seus pais devem ser alertados e estar
cientes que seus filhos, agressor ou agredido, precisam de ajuda
especializada. O comportamento dos pais diante deste comunicado é muito
importante: não se deve cobrar o revide, nem intimidar ou agredir. Este é um
momento de aprendizado para todos, e mostrar como se controlar, manter a
calma e evitar comportamentos de violência é imprescindível. (NOGUEIRA, 2005,
p. 9).
Um
erro constante dos pais que tomam conhecimento de filhos que sofrem violência
é instigá-los à réplica com frases como “você
não é homem não?” ou “seja homem,
pegue-o da próxima vez”, significando incentivo à violência e despreparo
enquanto pais ao provocar o contra-ataque, sendo importante a escola
identificar e entender quem são os pais dos educandos, desenvolvendo ações de
conscientização.
A
ABRAPIA defende como necessária a formação de professores preparados para
intervir em situações de bullying e
outros tipos de violência, possibilitando conhecerem os meios de apoio e
encaminhamentos para medidas legais e soluções às situações de agressões,
caso o diálogo com os envolvidos não tenha êxito. É preciso formar alunos
conhecedores do que é bullying e
dos prejuízos que o mesmo resulta, promovendo ações antibullying, conscientizando-os dos danos, exaltando o respeito
às diferenças, a solidariedade e proporcionando relações saudáveis entre
professor-aluno, aluno-aluno, aluno-comunidade.
Sobre
esta temática, Guareschi e Silva (2008) defendem que,
A escola deve priorizar a
conscientização geral de seus alunos e estimulá-los ao engajamento em
projetos antibullying. Deve-se
encorajar os alunos a participar de intervenções que promovam a supressão de
atos que caracterizam o bullying
para, desse modo, mostrar aos autores que eles não terão seu apoio, nem sua
omissão. (2008, p. 77).
Assim, combater
o bullying é uma tarefa permanente
de educadores, pais e sociedade em geral, conscientes de que não é de uma
hora para outra que este problema seja solucionado e que há dificuldades para
alcançar êxitos no seu combate, pois se trata de um fenômeno complexo, sendo
necessário o envolvimento de educadores e pais, mesmo quando estes alegam
falta de tempo no acompanhamento da formação sócio-biológica dos filhos.
É
necessário promover orientações, uma conscientização de forma geral e, sempre
estar discutindo a respeito do bullying
nas escolas, nos lares e ambientes de trabalho, para evitar que o fenômeno
seja reproduzido na vida adulta, gerando um círculo vicioso.
6
CONCLUSÃO
Até
a pouco o bullying se apresentou de
forma natural e camuflada em nossas escolas. Com o crescente número de ações
violentas no interior das mesmas, houve a necessidade de se investigar tal
prática, analisando como ela se manifesta na sociedade e na escola,
conhecendo suas características e seus personagens e ainda os fatores que
favorecem sua ocorrência no âmbito escolar.
O
bullying é um tipo de violência,
apresentando-se em forma de agressões físicas, verbais, psicológicas contra o
outro, geralmente sobre uma mesma pessoa, de maneira repetitiva, trazendo
consequências graves e negativas na vida dos envolvidos, a exemplo do
desenvolvimento de doenças decorrentes dessa prática, chegando a levar o
atingido a um estado crítico e trágico, como a opção pelo suicídio ou
assassinatos, bem como a reprodução dos atos sofridos na idade
infanto-juvenil, prejudicando as relações afetivas e sociais.
O
bullying não pode ser visto como um
fenômeno natural. É uma questão social e, portanto de gestão e
responsabilidade do Estado.
Assim,
faz-se necessário uma conscientização sobre essa problemática, envolvendo a
família, a escola e o Estado, para que juntos promovam ações para seu
enfrentamento, obtendo soluções de curto, médio e longo prazo, pois suas
causas estão no modelo de sociedade que vivemos, provocando círculos viciosos
entre as crianças, adolescentes e jovens.
É
na escola que os sinais de bullying
mais se manifestam e podem ser trabalhados, uma vez que é o espaço de
aglomeração e diversidade. Destacamos que esta forma de violência é
decorrente da maneira com que nossa sociedade está organizada, de suas
relações individualistas, excludentes e competitivas, onde as pessoas na
maioria das vezes só pensam em si e na satisfação de suas próprias necessidades,
deixando de lado todo o vínculo afetivo, de fraternidade, amor ao próximo e
intolerância às diferenças, sentindo-se superiores às demais pessoas,
resultando em disputa de poder entre os indivíduos, refletindo na família, no
trabalho e na escola.
Por
fim, espera-se que este estudo contribua como ferramenta para a diminuição
das práticas de bullying dentro e
fora do ambiente escolar, e que as ações preventivas de resgate e
socialização dos envolvidos configurem-se em parte da agenda do Estado e das
instituições de ensino.
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01 março, 2010
Carta da 4ª Conferência de Educação do Campo do Sul e Sudeste do Pará
18 dezembro, 2009
TRABALHO INFANTO-JUVENIL: A retroação na história da organização social do trabalho
Doutora em Educação; Depto de Teoria e Prática da Educação – Universidade Estadual de Maringá (UEM); Programa de Pós-Graduação de Educação da UEM; Grupo de Estudos e Pesquisas e Políticas e Gestão Educacional (GEPPGE-UEM).
OBSERVAÇÃO:
Artigo publicado na Revista COMUNICAÇÕES, da Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP/SP, Ano 6, número 2, novembro 99, pp. 170 a 180 – ISSN 0104-8481.
O objetivo deste artigo é iniciar um estudo a respeito da utilização da mão-de-obra infanto-juvenil no campo. Para buscar entender essa prática, é preciso lembrar que a saída do homem do campo para as cidades foi motivada, em grande parte, pelo processo de industrialização das cidades.
A história da organização social do trabalho nos mostra que o processo de industrialização mundial agregou grande população infanto-juvenil oriunda do campo como mão-de-obra lucrativa em diferentes partes do mundo capitalista em nome da produção.
Para analisar esta questão como início de estudo, observamos que Marx ao buscar rumos para a “Crítica da economia política”, se orienta pela idéia de concreto como sinal de unidade do diverso para a realização sintética, porém reflexiva de uma sistemática de pensamento. Constatamos que essa busca levou-o a algumas generalizações que facilitaram a construção de parâmetros de análise vinculados à prática social da produção como algo concreto e abstrato ao mesmo tempo. Concreto porque pressupõe a determinação de relações, e abstrato porque possibilita ao pensamento apropriar-se do concreto para representá-lo.
Tais observações nos ajudam a caminhar na busca de rumos para nossa análise pressupondo que a realidade do final do século XX tem como problema histórico que buscamos entender, a concentração de famílias recusadas pelas empresas urbanas que servem aos interesses de produção das agroindústrias fornecendo mão-de-obra de crianças e adolescentes.
O fato de a criança e o adolescente não contarem com organização jurídica de defesa de sua cidadania com poder de fazer valer esse direito humano favoreceu o desenvolvimento da exploração do capitalismo rural sobre essa população.
O setor rural, como é o caso do Brasil, com a instalação das agroindústrias exportadoras, tornou-se campo de concentração da agregação de crianças e adolescentes nas frentes de trabalho penoso longe das vistas da população politicamente ativa. Esse fato é de relevância para a compreensão da retroação como categoria de análise das ciências cognitivas uma vez que pretendemos situar nossa argumentação no trabalho infanto-juvenil do setor rural do espaço geográfico brasileiro contemporâneo.
A utilização da mão-de-obra infanto-juvenil, tanto no campo como na cidade, contribui para a extinção de gerações sadias físicas e mentalmente. Essa prática nada mais é do que a comprovação da falta de inteligência humana presente na organização dessa forma de captura de capital financeiro desvinculado do compromisso de garantir a vida digna ao trabalhador.
No ano de 1995, a UNICEF publicou relatório sobre a Situação Mundial da Infância que resultou do Encontro Mundial de Cúpula pela criança no ano de 1990. Vejamos uma conclusão mais generalizada divulgada pela UNICEF (1994):
Uma subclasse está, portanto, sendo criada, sub-educada e sem instrução, colocando-se abaixo dos piores níveis de progresso econômico e social, vítima da pobreza do passado, de salários reais decrescentes, e dos desgastes das redes de segurança social na década de 80.
Ao lado das tragédias mais visíveis de conflitos violentos ou de catástrofes súbitas, este processo mais sutil de marginalização econômica também está afetando muitos milhões de crianças no mundo de 1994, aumentando a probabilidade destas crianças não conseguirem desenvolver seu potencial físico e mental, não conseguirem completar a escola, não conseguirem encontrar trabalho, e não conseguirem tornar-se adultos bem adaptados, economicamente produtivos e socialmente responsáveis. (UNICEF, p. 3, 1995).
No Brasil o processo de agregação de mão-de-obra infanto-juvenil tem na agroindústria exportadora uma verdadeira fábrica de analfabetos, de seres fisicamente debilitados. Levantamento da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo constatou que, enquanto o adolescente trabalhador pesa em média 34 quilos, o que apenas estuda tem 49 quilos. Os trabalhadores também são 13 centímetros mais baios, tem o braço 4 centímetros mais fino e o pescoço 2 centímetros mais fino. (CARVALHO, 23/11/96, p. 37)
Essa realidade não é segredo para o mundo. No ano de 1997, a primeira dama Ruth Cardoso, participando em Oslo, Noruega, da Conferência Internacional sobre o Trabalho Infantil, vivenciou a situação de estar representando o Brasil como um dos grandes exploradores da mão-de-obra infanto-juvenil como é o caso da Guatemala, Tailândia, Paquistão e Índia.
Os dados expostos pela primeira dama foram publicados na Revista Veja nº 44 de 5/11/97 por Bruno Paes Manso. A publicação traz a confirmação da estimativa governamental sobre os dados apresentados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O número estimado de crianças e adolescente nas frentes de trabalho manejando enxada e carregando tijolos é de 5 milhões, sem contar outras formas de exploração. A estatística apresenta um balanço de como esta situação se configura. Dos 5 milhões entre 5 e 14 anos de idade, meio milhão tem idade abaixo de 10 anos.
O discurso da primeira dama revelou que no ano de 97, 30 mil crianças foram retiradas do mercado informal de trabalho. Nos cálculos de Manso, para que os 5 milhões passem pelo mesmo processo, no ritmo dos programas do governo, serão necessários 170 anos. Um outro dado relevante apresentado pelo IBGE, segundo Manso, é de que além das crianças e adolescentes que já trabalham, 1 milhão estão em busca de emprego por falta de recursos das famílias.
Essa realidade catastrófica pode ser analisada de forma mais regionalizada para que possamos nos aprofundar em questões específicas em relação à exploração do trabalho infanto-juvenil no Brasil. É com esse objetivo que nos colocamos a tratar do trabalho infanto-juvenil como retroação histórica a partir de uma reflexão regionalizada.
Tomaremos a região Norte/Noroeste do Estado do Paraná, como base geográfica representativa no cenário nacional da indústria de agroexportação sustentada pela monocultura da cana.
O Estado do Paraná é grande produtor agrícola. A monocultura avança dia-a-dia seus campos de cultivo tornando a vida do homem rural quase inexistente. O principal cultivo é o da cana de açúcar para a produção de álcool. Essa cultura exige contingente elevado de mão-de-obra. A população trabalhadora produtiva envolvida no manejo do facão durante o corte da cana, historicamente, tem se constituído de adultos descartados pelo setor urbano da economia juntamente com seus filhos (crianças e adolescentes).
Esta constatação é resultado dos trabalhos realizados pela “CPI do Bóia-Fria” (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Assembléia Legislativa do Estado do Paraná. No ano de 1993, enquanto a cúpula mundial pela criança concluía que mundialmente se está produzindo uma população incapacitada de desenvolver suas potencialidades físicas e mentais, no Estado do Paraná, a CPI concluía seu relatório identificando a população infanto-juvenil explorada no meio rural.
Os relatos contidos no documento registram a presença de crianças trabalhando no meio rural ainda de chupeta. Chamou-nos atenção esse fato por entender que os prejuízos de uma nação que permite essa prática de exploração das futuras gerações são evidências de que sua economia prevalece orientada pela obtenção do lucro a qualquer preço.
No dia 25 de setembro de 1997, em Hong Kong, James Wolfenson, presidente do Bird (Banco Internacional de Desenvolvimento), ao falar na assembléia anual do Banco Mundial afirmava que “o lucro a qualquer preço não é mais o padrão do capitalismo internacional, embora esta visão ainda resista nos países do Terceiro Mundo”. (Folha de Londrina, editorial, 26/9/97)
A conduta de pagar qualquer preço para produzir lucro vem sendo discutida mundialmente diante das determinações capitalistas em relação ao trabalho infanto-juvenil. As constatações dos organismos supranacionais esclarecem a preocupação do capital internacional com a previsão do que podemos estar produzindo para o século XXI em termos de mão-de-obra produtiva. Podemos observar o manifesto contido no relatório de 1995 publicado pela UNICEF por entender que a criança está no centro da problemática do futuro da humanidade:
O UNICEF acredita que é chegado o momento de colocar as necessidades e os direitos da criança como ponto central nas estratégias de desenvolvimento.
Este argumento não se baseia nem em interesses institucionais particulares, nem em sentimentalismo com relação aos mais jovens; está baseado no fato de que a infância é o período no qual mentes e corpos e personalidades estão sendo formados, e durante o qual privações, ainda que temporárias, podem infligir prejuízos e distorções no desenvolvimento humano que serão sentidos por toda a vida. [...] o mundo não poderá resolver seus principais problemas enquanto não aprender a desempenhar-se melhor na tarefa de proteger e investir no desenvolvimento físico, mental e emocional de suas crianças. (UNICEF, 1995, p. 9).
A visão redentora implícita nas publicações da UNICEF em relação a criança como futuro da humanidade nos faz pensar no desdobramento das políticas nacionais e supranacionais diante da hipótese de que qualquer estratégia que se queira implementar em prol da criança estará fortemente fundamentada na preocupação com a falta de mão-de-obra, dentro de curto espaço de tempo, para sustentação do setor primário da economia mundial.
Se em 1995, a preocupação mundial com a criança e o adolescente é tomada como sendo um fator prioritário de desenvolvimento das nações, e se essa preocupação está intimamente relacionada com a formação física, mental e emocional dos seres humanos, isto se transforma, para uma reflexão didática, em questionamentos. Como podemos entender a prática de desrespeito a essa população a partir de informações regionalizadas?
Podemos partir da constatação jurídica legal no Brasil que nos diz que o corte da cana é trabalho penoso – aquele que desgasta o físico e provoca envelhecimento precoce – e que por lei é proibido para menores de 18 anos devido a série de males que causa à saúde. Waki, médico da Universidade de São Paulo, conforme publicação da Revista Veja, p. 36 de 23/10/96, diz que o trabalho na cana aumenta os riscos de doenças como mocardite, hipertensão arterial, arteriosclerose, enfisema pulmonar e afecções do aparelho reprodutor.
A outra questão a ser abordada é a fome endêmica compreendida como problema alimentar derivado das relações de dominação herdadas do colonialismo.
ABRAMOVAY (1996: 94), ao estudar a atualidade de Josué de Castro e a Situação alimentar Mundial, escreve que:
A gravidade do problema alimentar no meio rural é uma das mais veementes condenações do próprio modelo de desenvolvimento agrícola implantado na maior parte dos países do Terceiro Mundo que, muitas vezes, estimulou o aumento das safras, mas eliminou ou marginalizou do cenário as regiões e as populações que não podiam ter acesso às tecnologias em que se baseou a Revolução Verde.
O aumento das safras pela monocultura e o emprego de tecnologia pelos latifúndios, são as principais questões a serem entendidas. O cultivo da cana no norte/noroeste do Estado do Paraná tem sido sinônimo de empobrecimento da população trabalhadora, e da terra da região. Com a expansão das plantações de cana, ocorre substancial diminuição da produção de alimentos necessários à subsistência local em quantidade e qualidade/diversidade.
Outra informação a ser considerada como argumentação para o entendimento da fome endêmica na região é o uso de tecnologias avançadas em outros cultivos o que restringe a ocupação de trabalhadores braçais nas frentes de trabalho para o corte da cana. Essa atividade é temporária/intensa[1] e por produtividade, ou seja, o trabalhador recebe pela quantidade produzida e pela qualidade da cana colhida. Nas frentes de trabalho, conforme “CPI do Bóia-Fria” (1993), encontramos crianças e adolescentes.
Se o trabalho penoso, como já registramos, causa problemas à saúde do trabalhador adulto, o que seria possível analisar no caso de crianças e adolescentes?
Insistimos na reflexão sobre os prejuízos para vida destes seres em formação. Será possível avaliar o desgaste mental e emocional destes seres com a mesma precisão da avaliação física?
A deficiência alimentar aliada ao trabalho penoso, certamente, poderá justificar a maior parte dos problemas de saúde que estas pessoas manifestarão durante suas vidas. As conseqüências destes problemas infelizmente são observados pelos organismos internacionais apenas como prováveis perdas no contingente de mão-de-obra para o século XXI.
Sinaceur, da divisão de Filosofia da UNESCO, nos lembra a célebre advertência de Rousseau: “não conhecemos a infância e com nossas falsas idéias sobre a infância, quanto mais longe vamos, mais nos perdemos.” E salienta:
Não basta ter consciência de que os que rodeiam a criança desempenham papel importante em seu desenvolvimento e de que a criança é um pólo de expectativas e projetos mesmo antes de nascer. O mais importante é saber como essas expectativas e projetos repercutem na criança e até que ponto a predeterminam. (CORREIO DA UNESCO, 1978, p. 30).
Ao salientar que as crianças são seres predeterminados, nos damos conta de que as crianças e os adolescentes que trabalham na zona rural são influenciados pela organização do trabalho no setor agrícola e que os envolvidos com esse meio de produção desempenham importante papel na vida da criança e do adolescente e na conceituação de criança e adolescente.
O trabalho infanto-juvenil cria um novo conceito de criança e de adolescente. O conceito generalizado de infância e adolescência está distante dessa realidade. A linguagem, a resistência física, o autocontrole, a relação com os adultos, o compromisso com o trabalho, a competência para produzir a própria subsistência são evidências de uma nova concepção de formação humana.
Apesar das evidências, o que a nosso ver caracteriza de forma generalizada o novo conceito, é a idéia de produtividade. Para o setor explorador, fica delineado o conceito de homem-máquina durável de produzir para criança/adolescente-máquina descartável de produzir.
O principal argumento de confirmação para essa tese seria o não investimento na formação escolar da população trabalhadora na zona rural. A cultura da cana não permite que os trabalhadores residam no campo. Por esse motivo habitam as periferias das cidades. Considerando o desgaste físico e mental diário, pressupomos que as dificuldades em acompanhar os estudos do ensino regular tornam-se uma tarefa dolorosa e improdutiva.
Se um ser em fase de desenvolvimento físico-mental e emocional é tratado como uma coisa que não precisa de condições para estudar, para brincar, para conviver com a família, para realizar refeições equilibradas, para dormir, então não é tratado como humano. Ao contrário, é concebido como máquina. Mais que isso, é tratado como máquina descartável que ao apresentar qualquer problema pode ser substituída. É assim que temos analisado a conduta do explorador que modela essa criança-máquina, esse adolescente-máquina.
Consultando dados oficiais da UNESCO e da UNICEF entre outros organismos, encontramos tabelas demonstrativas de taxas de crescimento da população mundial com previsão até para o ano 2050. A leitura dos dados indica que há preocupação destes organismos em combater o trabalho infanto-juvenil por entenderem que as estimativas são de brusca diminuição da população mundial.
Essa diminuição é estatisticamente prevista nos países considerados em desenvolvimento e nos considerados menos avançados. Até o ano 2025 os índices demonstram 50% de diminuição da população. A diminuição vem sendo interpretada como previsível falta de trabalhadores devidamente adequados para os setores essenciais de produção.
Considerando o pensamento de Rousseau – em Sinaceur – nossas reflexões se voltam mais uma vez para o que entendemos ser primordial discutir: Como conceber a criança e o adolescente que tem sua consciência desconsiderada e sua identidade negada sob o conceito de máquina descartável de produzir? A aproximação de um conceito real pressupõe pensar a relação homem-máquina.
Buscaremos demonstrar alguns parâmetros para pensar a relação homem-máquina considerando a organização social do trabalho a base da argumentação. Deste modo podemos combinar as observações relacionadas a seguir como um guia para nossas posteriores reflexões.
Em se tratando do trabalho infanto-juvenil na zona rural, consideraremos o trabalho de corte da cana em terreno inclinado uma situação de análise na qual o homem e a máquina têm função de trabalho. Os parâmetros levantados são os abaixo relacionados:
Na situação exemplificada tanto o homem como a máquina podem cortar cana, mas somente o homem pode hoje cortar cana em terreno inclinado e amanhã em terreno plano com produção equivalente. Não existe um homem que corta cana somente em terreno inclinado e um que corta cana em terreno plano. A máquina necessita de adaptações mecânicas para realização de um mesmo tipo de trabalho em terrenos inclinados e planos.
Como podemos pensar a criança e o adolescente-máquina? É possível atribuir ao homem as características de uma máquina? Atribuir à máquina características humanas é um sonho pelo qual cientistas do mundo contemporâneo trabalham incessantemente com o reconhecimento da humanidade por demonstrarem as possibilidades de criação do homem. Mas como podemos avaliar aqueles que não são cientistas e insistem em atribuir ao homem função de máquina descartável de produzir?
Pensar o homem-máquina pressupõe negar a existência da emoção, da consciência, do pensamento, da reflexão, da organização. Significa desqualificar o homem enquanto ser humano, enquanto ser que pensa, que transmite seus pensamentos com linguagem própria, que evolui fisicamente, mentalmente e emocionalmente. Pensar este homem é pensar um ser sem possibilidades, um ser treinável e produtivo por um determinado tempo.
É a identificação dessa inversão de valores que nos ajudam a compreender a conduta dos que se utilizam desse conceito de homem. Como já registramos neste artigo, o número de seres humanos economicamente determinados como mão-de-obra produtiva e descartável no Brasil continua desconhecido. No Estado do Paraná a situação não é diferente, no entanto, podemos retomar a idéia de trabalhar o problema regionalizado para pontuar questões que podem ser generalizadas.
Primeiro vamos relacionar algumas práticas que nos mostram ações daqueles que se utilizam do homem-máquina infanto-juvenil conforme registro da Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembléia Legislativa do Estado do Paraná no ano de 1993:
VALE DO IVAÍ EM 12/08/93[2]
Município de Faxinal: A CPI flagrou durante a madrugada, adolescente de 15 anos dirigindo trator que puxava carreta carregada de bóias-frias;
Município de Lunardelli: 7.500 habitantes. Destes, a cada 10 examinados, 6 eram portadores do bacilo da tuberculose e, dos eleitores, 66% eram analfabetos;
Municípios de São Pedro do Ivaí e São João do Ivaí: muitas crianças estão trabalhando na lavoura, outras se prostituindo e há alta incidência de gravidez na adolescência e há elevado índice de analfabetismo. Grande número de acidentes com veículos que transportam os bóias-frias.
REGIÃO NOROESTE EM 13/08/93[3]
Municípios de Paranavaí e Amaporã: A CPI encontra muitos caminhões transportando bóias-frias, entre eles dezenas de crianças. A comissão registra a seguinte frase dos trabalhadores: “aqui vai de mamando a caducando”.
Município de Querência do Norte: 10.400 habitantes, 6.200 bóias-frias (homens-mulheres-crianças);
Santa Cruz do Monte Castelo: 10.500 habitantes, todos bóias-frias.
A relatora da Comissão[4] registra o seguinte parecer: “Dessa conveniente simbiose nasce e floresce uma indústria de desrespeito à dignidade humana e aos valores sociais do trabalho.”
Em todo o documento é possível levantar práticas inaceitáveis ocorrendo, como transporte inseguro, concessão de alvará para emissão de carteira de trabalho de menores de 14 anos, compra de sindicalistas, trabalho escravo de crianças e adolescentes, entre outras. São as atitudes de desrespeito à vida humana que fundamentam a determinação do conceito de criança e adolescente específico do meio rural dedicado à monocultura da cana.
Conceber este ser como máquina, a nosso entender, extrapola o conceito de trabalhador escravo. O escravo podia sonhar com a fuga, com a compra da liberdade. O trabalhador concebido como máquina encontra-se sem possibilidade de sonhar com a fuga, muito menos de sonhar com a compra da liberdade de trabalho. Facilmente substituível. Sua falência não representa perda para essa forma de organização do trabalho.
O escravo tinha que ser comprado e, seu valor de venda devia ser conservado, isso determinava o lucro do proprietário. O “homem máquina” não precisa ser comprado, não precisa ser mantido em boas condições físicas e mentais e representa lucro garantido. A vida humana perde aí seu significado. É isso que transforma o homem em máquina. Máquina, porque pode ser manipulado para o trabalho através de regras de produção.
O “homem máquina” não precisa de segurança. Se morrer em acidente de transporte para o trabalho pode ser facilmente substituído e sem prejuízos. Não precisa de escola, não precisa pensar, não precisa ler e escrever, não tem que se comunicar, não lhe resta tempo para isso. Não há possibilidade de evoluir intelectual nem fisicamente.
Máquina também não precisa de alimentação e nem de atendimento à saúde, afinal máquina não adoece e quando quebra ou entra em falência é reposta. Como máquina não se organiza socialmente, então não precisa de sindicato. Como o uso da máquina independe de sua idade desde que seja produtiva e não cause problema, porque não pensar na utilização do trabalho da “máquina criança e adolescente”, portanto nova, em construção, passível de ser remodelada, tornada mais eficaz, mais rápida, mais precisa, mais produtiva do que é no estágio inicial de seu desempenho no trabalho.
Se assim o for não importará seu tempo de vida útil. Importará sua capacidade de produção, sua operacionalidade, sua reprodução em massa para a garantia da continuidade do sistema de produção lucrativo. Essa é a lógica do pensamento que podemos ler na realidade brasileira como justificativa econômica da prática social da utilização do trabalho infanto-juvenil de caráter penoso.
A retroalimentação desse sistema de exploração de mão-de-obra é possibilitada na medida da manutenção social dos meios de reprodução do conceito de homem máquina como sinônimo de desenvolvimento econômico.
Enquanto a criança e o adolescente continuarem sem possibilidade de desenvolvimento físico, mental, emocional e organizativo, não poderemos deixar de procurar entender os pensamentos que justificam a prática do homem que provoca a extinção de sua própria espécie. Será ele um ser humano? Será que ele possui inteligência humana? Que tipo de mente possui este homem?
Estas são as questões que acreditamos ainda merecerem atenção para a continuidade de nossa reflexão em momentos futuros. Mas como o objetivo deste artigo foi iniciar o estudo da lógica que sustenta a exploração do trabalho infanto-juvenil para dizer que esta prática, em nosso entender, significa a retroação da organização social do trabalho, acreditamos ter construído argumentos para atingir esse objetivo. As questões finais deixaremos como compromisso de retomar a reflexão em momento oportuno.
BIBLIOGRAFIA
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9. MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos e outros textos escolhidos. Seleção de textos de José Arthur Giannotti. Traduções de José Carlos Bruni (ET AL.). 4ª Ed., São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os Pensadores)
10. MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Ed. Bertran do Brasil, 1996.
11. SEARLE, John R. A redescoberta da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
12. SINACEUR, Mohammed A. e Jean-Jacques Rousseau. Que a infância amadureça na criança. Correio da UNESCO. Fundação Getúlio Vargas, ano 6, nº 7, 1978.
13. SOARES, Adriana. O que são ciências cognitivas. São Paulo: Brasiliense, Primeiros Passos, 1993.
14. UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância. Relatório da reunião de 1990 da Cúpula Mundial pela Infância. Situação Mundial da Infância. São Paulo: UNICEF de Brasília, 1995.
[1] Entende-se por atividade “temporária/intensa” o corte da cana em período de colheita da safra. “temporária” por compreender alguns meses de trabalho durante a safra. “Intensa” por ser desenvolvida em longa jornada de trabalho diário.
[2] Maiores informações podem ser encontradas no relatório final da CPI do Bóia-fria/93 – Assembléia Legislativa do Estado do Paraná – nas páginas 5 e 6.
[3] Idem
[4] Deputada Estadual Emília Belinati.