08 dezembro, 2006

VIOLÊNCIA URBANA E RURAL: A questão agrária no Brasil

Trabalho apresentado no “I Seminário Internacional Direitos Humanos, Violência e Pobreza – A situação de crianças e adolescentes na América Latina hoje - UERJ - 25, 26 e 27 de outubro de 2006” – GT I: Direitos Humanos e Criminalização da questão social na América Latina. Questão Social e Cidadania na América Latina, em 26/10/2006. Publicado nos Anais: ISBN 85-88769-11-5.

Elias Canuto Brandão
Historiador, mestre em Educação e doutor em Sociologia; professor colaborador na Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí (2005-2007); conselheiro nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos/Brasil (MNDH) e coordenador do MNDH no Paraná (2004-2008). Blogs: http://porta-da-cidadania.blogspot.com e http://elias-brandao.blogspot.com; E-mails: brandao@teracom.com.br ou canutobrandao@hotmail.com


Apresentação
Discuto no presente artigo a violência urbana e rural no Brasil, conseqüência da organização social e política desde a invasão portuguesa em 1500. Trabalho com a questão da territorialidade, tendo como tema principal a terra e o antagonismo: riqueza X pobreza; latifúndios X pequenos agricultores, estratégias de governo X políticas públicas.
A terra usada para produção-exportação implica na exclusão e pobreza, na migração por trabalho nas cidades e campos, na condição de diaristas, bóias-frias ou mensalistas.
Em contraposição, as políticas econômicas adotadas favorecem a acumulação e a concentração de terras, industrias, comércio e bancos que influenciam nas políticas setoriais do país. Acrescentemos ao disparato o desmatamento, as queimadas e os assoreamentos dos rios.
As conseqüências das diferenças sociais e da acumulação de bens e capitais é a destruição da natureza: seca, desaparecimento de minas e rios, alteração do meio ambiente, êxodo rural, inchaço nas cidades, desemprego, marginalização, organização de favelas e ocupações desordenadas dos espaços urbanos por meio de moradias debaixo de pontes, morros e mananciais e a perda da dignidade humana.
O inchaço das cidades favorece a organização do tráfico de drogas, o crime social e político, a violência urbana, a superpopulação carcerária e a corrupção nos diferentes setores da sociedade, permeando o executivo, o legislativo e o judiciário, o que poderia ser equacionado com políticas públicas de Reforma Agrária de retorno do homem ao campo.

A questão agrária

A questão agrária no Brasil iniciou errada desde a colonização/invasão, em 1500, século XVI. As políticas adotadas, no período, pela Coroa portuguesa para o Brasil têm as mesmas características metodológicas das políticas agrárias e agrícolas implementadas pelo governo brasileiro do início do século XXI. São políticas que favorecem acumulação e a concentração.
Para os grandes latifúndios há sempre favorecimentos, projetos e programas de longo prazo viabilizando quitações de empréstimos ou mesmo perdão de dívidas, juros e correções monetárias.
O contrário ocorre com os pequenos proprietários, minifúndios e assentados. Os projetos são de curto prazo e não se constata perdões de dívidas, juros e correções.
A questão agrária – terra – é sinônimo de enriquecimento e acumulação. Quem a tem, tem vez, tem poder, tem voz, define as políticas, determina os governantes e interfere nas esferas dos poderes: executivo, legislativo e judiciário.
Tratando-se da terra, algumas situações devem preocupar os cidadãos: o desmatamento, as queimadas e os assoreamentos dos rios, que resultam nas constantes secas e no desaparecimento das minas e rios, o que, em breve, prejudicará todos os animais e o meio ambiente.
A estrutura organizacional política no Brasil, desde a colonização, têm favorecido o êxodo rural, o inchaço das cidades, o desemprego, a marginalização, a organização de favelas, as ocupações e moradias desordenadas em morros, mananciais e debaixo de pontes. A organização estrutural favorece a organização do tráfico de drogas, o crime social e político, a superpopulação carcerária e a corrupção generalizada nas diferentes classes sociais: ricas e pobres, nos setores privados e públicos, na economia e na política.
As desigualdades sociais e políticas, geram violências, guerra de quadrilhas especializadas, permeando os diferentes escalões dos setores públicos, inerentes na história política dos países.
Os criminosos do século XXI, encontram-se estabelecidos em todos os setores públicos e privados, podendo ser empresários e políticos camuflados de honestos e éticos.
As situações vivenciadas na contemporaneidade são resultados da organização social e política do Brasil colônia, conseqüências da forma como a distribuição das terras foi implementada pela Coroa portuguesa favorecendo a concentração, acumulação e especulação de terras, enriquecendo poucas famílias.
Marcou o período a distribuição/concessões pela Coroa portuguesa a integrantes da nobreza portuguesa ou aos prestadores de serviço à Coroa, de grandes extensões de terras – chamadas capitanias hereditárias. Os favorecidos das capitanias tinham o direito de a explorá-la, protegê-la e conceder a terra a herdeiros. Tal política durou do período colonial ao início do império.
As capitanias foram o início do surgimento dos latifúndios escravistas que se sustentavam nas produções de açúcar voltadas para exportação e eram estruturados nas grandes propriedades que viviam do tráfico negreiro.
No período da colonização, a apropriação da terra se deu por meio da expropriação do que existia: pau-brasil, ouro, prata, índios, imigrantes europeus, negros...
A estrutura escravista começou a ser abalada na metade do século XIX, pela Lei de Terras de nº 601, de 18/09/1850, que estabelecia proprietário de terra somente aquele que a comprasse em dinheiro da Coroa, marginalizando os pobres, vez que somente aqueles que tivessem recursos financeiros poderiam ser proprietários. Aos pobres (colonos, imigrantes e índios) coube trabalhar para os latifundiários, resultando no endividamento dos pobres nas fazendas visto terem que comprar produtos para alimentação, vestuário ou doenças nos armazéns existentes nas fazendas e pertencentes aos latifundiários. Ou seja, o que ganhavam ficava na fazenda como pagamento de dívidas.
Destacamos que a Lei de Terras contribuiu com o monopólio e concentração da terra, dificultando o acesso dos pobres a ela que passaram a fazer parte de um mercado de substituição à mão-de-obra escrava.
A substituição da mão-de-obra escrava resultou na busca de imigrantes europeus que foram utilizados para preencher a ausência interna de mão-de-obra da cana-de-açúcar (Nordeste) e plantio de café (Sudeste). Diante do exposto, podemos pontuar:
· 1534: início da repartição das 15 capitanias doadas a 12 donatários;
Ø Mais tarde, das capitanias, criou-se as sesmarias – extensões de terras menores que as capitanias que também eram grandes extensões de terras e eram sempre doadas aos amigos do rei;
Ø No mesmo ano iniciou o tráfico negreiro da África.
· 1822: Independência do Brasil;
Ø As terras até 1850 eram adquiridas por doação e ou posse por parte dos colonos;
· 1850: Decretada a Lei de Terra nº 601, que estabelece a compra da terra;
Ø Prejudicados com a Lei de Terra: colonos pobres, negros e índios;
Ø Beneficiados com a Lei de Terra: pessoas abastadas e latifundiárias;
· Economia do País do século XIX: agrário-exportadora de base escravista e a monocultura eram de cana-de-açúcar e café;
· Pós 1850: início das atividades industriais na Europa com mudanças para o Brasil, resultando em:
Ø Pressões da Inglaterra contra o tráfico de escravos;
Ø Pressões para regulamentação das propriedades rurais;
Ø Substituição da mão-de-obra escrava por imigrantes europeus;
· 1889: Proclama-se a República, mas a base latifundiária oligárquica continua a dominar a política e a economia nacional;
Ø A base oligárquica revolta os trabalhadores do campo que se organizam, a exemplo da revolta de Canudos;
Ø Os trabalhadores reivindicam “salários mais justos, melhores condições de alimentação e de trabalho” e se organizam em “grupos de cangaceiros no sertão nordestino” (RECH, 1994, p. 17).
· Século XX. O modelo fundiário em grandes latifúndios existentes desde a Coroa portuguesa, resultou a partir da segunda metade do século XX em organizações de movimentos sociais no campo lutando pela conquista de terras – reforma agrária. Analisando o exposto e confrontando com o pensamento de Caio Prado Júnior, podemos observar que,


O que muito estimulou a pequena propriedade foi a formação de grandes aglomerações urbanas e industriais. A produção de gêneros para o seu abastecimento (verduras, frutas, flores, aves e ovos) não era compatível com os padrões clássicos de grande propriedade extensiva e monocultural (PRADO JÚNIOR, 1987, p. 251).

O processo de colonização em várias partes do Brasil em pleno Brasil república, a exemplo do norte do Paraná na segunda metade do século XX, possibilitou a existência de pequenas e médias propriedades por um curto período de tempo. Seu desaparecimento nas três últimas décadas do século XX, entre outros fatores, foi devido a ausência de políticas públicas voltadas para o pequeno agricultor, proporcionando a concentração de terras em formato de latifúndios, com políticas voltadas ao agro-negócio e à agro-exportação.
No início da década de 1960, por exemplo, o acúmulo de vários problemas sociais no campo e a ausência de uma política governamental para resolver os problemas sociais e econômicos, empobreceu os camponeses e desencadeou um processo migratório interno sem procedência (com a migração de milhares de famílias nordestinas para os estados de São Paulo e Paraná, entre elas a deste apresentador, no ano de 1965). Destacamos que o país é eminentemente agrícola, constituído de pequenos agricultores, embora o processo de industrialização já fosse evidente no período.
O fim da década de 1950 e primeira metade da década de 1960 podem ser considerados precursores dos avanços relacionados com a questão agrária e com o surgimento dos movimentos sociais no campo, sob a influência de partidos e lideranças políticas que exigiam mudanças estruturais no campo, entre elas uma reforma agrária imediata. Entendiam que a reforma agrária amenizaria os problemas sociais e econômicos no campo.
Não imaginavam as lideranças sociais e políticas e nem os cidadãos que participavam dos movimentos sociais, que suas reivindicações no decorrer da década de 1960 e 1970, resultasse em perseguições, prisões, torturas e mortes com crueldades sobre estudantes, profissionais da educação, lideranças sindicais, políticas e religiosas, praticadas por militares brasileiros. As ações militares tiveram como resultado o surgimento na Arquidiocese de São Paulo, de Centros de Defesa de Direitos Humanos (CDDH) que, assemelhados aos que hoje existem, surgiram para defender os perseguidos e presos políticos pelo regime militar, ou seja, cidadãos com direitos políticos negados.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos determina em seu “artigo V” que “ninguém pode ser submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”, prevalecendo assim, de acordo com a Declaração, nos artigos I e VII, a liberdade e a igualdade em dignidade de direitos, sem qualquer distinção, assim como “proteção contra qualquer discriminação”.
Nesta linha de raciocínio, o que se faz hoje nos centros ou grupos de direitos humanos Brasil adentro, é defender o direito à vida, à educação, à saúde, ao emprego, à terra, à água potável, ao salvamento dos rios, lagos e mananciais. Além da defesa, os centros e grupos desenvolvem ações contra a tortura de todas as formas, independente do local e espaço onde aconteça: em casa, na rua ou nas prisões.
Visando a erradicação da violência em forma de tortura, apresentamos o resultado de denúncias de torturas feitas por meio do telefone 0800 “SOS Tortura” ao Sistema coordenado pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos/Brasil (MNDH) entre os anos de 2001 e 2003. Dos 2.206 casos identificados no sistema como torturas, 1.366 ou seja 60,6%, foram caracterizados como tortura institucional, tendo as polícias militares e civis como protagonistas diretos ou indiretamente envolvidos; 222 casos, ou seja 10,1%, foram caracterizados como tortura privada e; 648 casos, ou seja, 29,4%, foram caracterizados como não torturas por não ter havido, por exemplo, testemunhas e ou provas que subsidiasse cada denúncia.
Em vista da Lei nº 9455/97 de 7 de abril de 1997, que define os crimes de tortura e dá outras providências discutiremos os casos caracterizados como tortura institucional, devido o Estado ser o principal violador dos direitos dos cidadãos. Dos 1.366 casos de torturas institucionais, destacamos que


O tipo de tortura mais recorrente é aquele que tem como finalidade obter uma confissão da vítima (Tortura-Prova) – 36,8% dos casos. Também é alta a incidência de práticas enquadradas como Tortura-Castigo (21,5%) e Tortura do Encarcerado (22,1%) [...]. Nota-se que, em alguns casos, o suposto desacato da vítima frente à autoridade policial dá ensejo às mais diversas e bárbaras agressões por parte dos agentes públicos. (MOVIMENTO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS – BRASIL, s/d, P. 36).

Destacamos ainda que das torturas institucionais, a maioria das vítimas


[...] são suspeitos de crimes, que vivem em condições sócio-econômicas precárias, com baixo nível de escolaridade e que, em geral, provém de grupos particularmente vulneráveis, cujos direitos têm sido tradicionalmente ignorados no País. (Ibidem).

Os agentes violadores agem na maioria das vezes sustentados na impunidade estrutural e judiciária e são na maioria, “policiais civis e militares”.
Dos 1.366 casos identificados de tortura, 829 ou seja, 62% foram praticados diretamente por policiais civis e militares e em 38% deles, policiais civis, militares e outros agentes do Estado estiveram envolvidos mesmo que indiretamente (funcionário de prisão, polícia federal, guarda municipal, funcionário público e ou polícia rodoviária) (Ibidem, pp. 37-38).
Destacamos que em 47,2% dos casos denunciados, as torturas foram praticadas em Delegacias de Polícias e em 26,9% foram praticadas em Unidades Prisionais.

Violência no campo

Voltando à nossa discussão sobre o campo, nossas observações e análises, sobre a “crise da agricultura” no início do século XXI – gostem ou não os produtores rurais – é conseqüência da “ganância” dos produtores rurais / latifundiários em acumular riquezas.
Devido à “ganância”, depreda-se a natureza por meio do uso desordenado de venenos, adubos e inseticidas; desmatam e atam fogo nas vegetações assoreando as nascentes, riachos, córregos e rios. O resultado da ganância e do uso desordenado do meio ambiente agride a terra, a água e as matas. Tamanhas agressões estão sentindo neste início de século XXI com a seca, queda da produção, doenças nas plantações e nos animais domesticados (febre aftosa e gripe aviária).
Tratando-se da violência, ela ocorre além da tortura física. É violência toda ação do homem por meio da agressão à natureza: rios, oceano e atmosfera, com prejuízos ecológicos irrecuperáveis em curto prazo. Dá-se ainda com as poluições industriais e por meio dos veículos de transporte, prejudicando a camada de ozônio, a sonorização e a áudio-visão dos homens e animais.
A violência à natureza se dá dos pequenos agricultores aos empresários do campo e, após cometê-las, atribuem a culpa da destruição e dos desastres ecológicos aos governos estaduais e federais.
A violência dá-se também sobre as pessoas de diferentes formas: tortura social, política, econômica e psicológica; em casa, no trabalho, no passeio, na igreja, na política ou na prisão.
A violência está caracterizada nos massacres que ocorrem sobre milhares de pessoas no campo e nas cidades; na criminalização dos movimentos sociais que lutam pela terra, moradia, emprego ou saúde e ou na destruição das políticas públicas voltadas às camadas vulneráveis da sociedade.
Conseqüências das diferentes formas de violências praticadas contras os cidadãos, o documento intitulado “Relatorias Nacionais em Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais” sobre “Alimentação, Água e Terra Rural, Educação, Meio Ambiente, Moradia Adequada e Terra Urbana, Saúde, Trabalho” da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais (Dhesc-Brasil) denuncia que,


Os processos de violação dos direitos incidem no dia-a-dia das relações sociais, promovendo exclusão e impedindo o acesso aos direitos. Manifestam-se de várias formas, desde o simples repúdio ou nojo contra o outro até formas de violência e apartação. (RELATORIAS NACIONAIS EM DIREITOS HUMANOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS, 2005, p. 143).

Para os relatores,


Negros, mulheres, indígenas e outras populações tradicionais, trabalhadores rurais e urbanos são os mais afetados pela violência e pela criminalidade, promovidas ou facilitadas pela ausência do Estado ou por ações das elites. (Ibidem, p. 144).

Destacamos ainda as identificações dos relatores do envolvimento direto das instituições e organismos públicos enquanto sujeitos da violência. Afirmam que


[...] instituições e organismos públicos são colocados a serviço de interesses privados ou se submetem a eles para viabilizar e legitimar esses processos. No limite dessa subordinação do interesse público aos privados, verificam-se formas ilegais e ilegítimas de funcionamento do Estado, configurando-se ele próprio sujeito ativo da violência e da discriminação – corrupção, criminalização dos movimentos sociais, utilização repressora abusiva do aparato policial. (Ibidem)

Acrescentemos à análise as violências praticadas contra a economia do povo por meio do desvio de verbas públicas; aumento desordenado de impostos municipais, estaduais e federais; perseguição política e ideológica; sonegação de impostos; compra de votos; manipulação da consciência social, política e religiosa, entre outras.
É importante destacar que ao tratarmos da violência, diretamente estamos tratando da violação dos direitos humanos a todas as áreas: educação, saúde, moradia, emprego, terra, meio ambiente ou seja, violação dos direitos sociais, políticos, econômicos e culturais. Destacamos ainda que o principal violador dos direitos humanos é o estado.
É no bojo deste contexto que após o final da década de 1970, com a crise do regime militar caminhando para seu fim na década seguinte, que ressurgem várias iniciativas de organizações sociais, entre elas o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra a partir de lutas isoladas – ocupações de terras, acampamentos e greves contra a construção de barragens das hidrelétricas – nos três Estados do Sul do Brasil e sua consolidação enquanto movimento no Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, em Curitiba, em 1985 (sobre o assunto, ver documentos da Comissão Pastoral da Terra – www.cpt.org.br e documentos do MST – www.mst.org.br ou “História social: da invasão do Brasil ao maxixe e lambari”, Editora Massoni, deste autor e ou “Educação: campo e cidade – territórios do saber”, de Maria A. Cecílio e Elias C. Brandão, Editora Massoni).
De todas as violências ocorridas no campo e na cidade, as que mais aparecem são as voltadas contra os movimentos sociais no campo – sobretudo contra o MST – e as que tratam dos presos nas cidades.
Destacamos que estas não são as únicas violências ocorridas. Elas são as que os meios de comunicações sociais (MCS) dão maiores ênfases por serem as que proporcionam ibope, causam impactos e resultam em vendas de imagens – matérias – aos proprietários dos MCS. Visando lucros, as manchetes apresentam termos impactantes: “sem-terra invadem prédio do Incra”; “presos recebem visitas dos direitos humanos” ou, “direitos humanos defendem bandidos”.
As manchetes jornalísticas são apresentadas visando passar a idéia de que os direitos humanos se resumem a defender presos ou sem-terra, enquanto os direitos humanos são um conjunto de direitos – saúde, moradia, emprego, educação, cultura, lazer e meio ambiente, conforme se constata na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos documentos e pactos internacionais assinados pelos diferentes governos dos cinco continentes, comprometendo-se com a defesa dos direitos dos cidadãos.
Outra forma de violência que é praticada pelos governantes e pelos empresários do campo e da cidade, é o achatamento salarial ao não concederem reajustes aos trabalhadores. Nestes casos, a violência torna-se dupla.
Primeira violência ocorre ao não concederem um direito constitucional líquido e certo – o reajuste. O segundo ocorre por meio da violência direta sobre os trabalhadores ao exigirem o cumprimento de seus direitos, seja por meio da greve ou da pressão sindical. Neste caso, a violência tem ocorrido pelo uso da força policial – despejo e prisões políticas com abertura de inquérito e processos civis e criminais.
Devido as constantes ações de violências – na maioria das vezes praticada por policiais civis e militares – a população no geral não se sente segura e, com razão.
Os policiais, em si, ao invés de apresentarem segurança, causam medo à população. No caso dos policiais militares, em muitas cidades a farda, em si, amedronta os cidadãos e pouco se constata fazer para que tais sentimentos sejam revertidos. Os policiais parecem trabalhar com medo e por isso se apegam à farda e à arma para demonstrarem autoridade.
O medo e as violências continuam ocorrendo a cada instante em vários lugares do mundo e de diferentes formas: nas famílias, na rua, no trabalho e nas prisões.
Nos meses de julho e agosto de 2006, dois exemplos merecem destaques no Paraná.
O primeiro exemplo foi a greve dos servidores públicos municipais de Maringá/PR, com duração de 30 dias e que no decorrer dela, vários trabalhadores foram agredidos por seguranças da administração. Como resposta à ocupação do Paço Municipal, aproximadamente 250 policiais foram utilizados para realizar ação de reintegração de posse do Paço, que se realizou após as 00h00, momento em que por volta de 80 servidores se encontravam no local. Ação resultou na detenção de mais de 40 servidores, além da prisão do presidente e do advogado do sindicato dos servidores que também foram detidos, no caso do advogado, transportado algemado para a delegacia.
De acordo com o comandante da operação, a ordem a ele repassada ara a de que todos os que não saíssem livremente deveriam ser detidos, independente de resistência. Para o comandante, o fato de não saírem livremente caracterizou desobediência e por isso foram encaminhados à delegacia, violando violação os direitos humanos, vez que “ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado”, simplesmente quando a única “resistência” é ser transportada de um espaço para outro. Prescreve o artigo XI:


Ninguém pode ser condenado por atos ou omissões que, no momento em que forem cometidos, não tenham sido delituosos segundo o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta penalidade mais grave do que a aplicável no momento em que foi cometido o delito (DECLERAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, Artigo XI).

A continuidade da violência ocorreu logo após a prisão quando, na delegacia, o delegado impediu, num primeiro momento, de os advogados e representantes dos direitos humanos de acompanharem os detidos que permaneceram ao relento enquanto foram ouvidos, sob forte frio, em pleno inverno.
O segundo exemplo, foi a onda de violência denunciada pela Comissão Pastoral da Terra do Paraná (CPT), contra sem terras.
De acordo com a CPT, entre 20 de julho e 01 de agosto de 2006, várias ações do governo do Paraná resultaram em um ferido, três presos, dois despejos e várias intimidações contra sem terra, a começar pelo município de Cruzeiro do Oeste, região Norte do Estado, resultando em ferimento, no dia 21 de julho, do “sem terra Almir Oliveira Rodrigues, surpreendido pelos tiros enquanto trabalhava na terra com outros companheiros” (http://www.cpt.org.br/?system=news&action=read&id=350&eid=126. “Nova onda de violência contra os sem terra no Paraná”). Outro episódio, ocorreu no dia “26.07.06, no município de Nova Tebas, região Centro-Oeste do Estado, onde cerca de 500 policiais militares despejaram as cerca 250 famílias que ocupavam a área desde o dia 07.07.06”. Nesta ação, três trabalhadores rurais foram presos e, no dia seguinte, as famílias reocuparam a área.
Por fim, no dia 01.08.06, no município de Paranapoema, cerca de 100 famílias acampadas foram pressionadas por cerca de 600 polícias militares a deixar a área. Todas as ações desde o início do governo Roberto Requião até o dia 1º de agosto de 2006, segundo dados da CPT num total de 99 ações, deixaram marcas de violência física e psicológica, haja vista que “foram presos 124 trabalhadores, 39 dos quais no ano de 2006”.
Para a CPT do Paraná, “a ação das milícias e da polícia tem deixado vários trabalhadores feridos: desde 2003 sofreram lesões corporais 54 trabalhadores”.
As situações identificadas nos indicam que de acordo com o artigo 1º, da Lei nº 9455/97, o Estado tem cometido crime de tortura ao:


I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, Lei nº 9455/97).

As análises e estudos sobre a violência no campo e nas cidades e sobre a questão agrária no Brasil nos sinalizam que realizar investimentos sobre políticas públicas de retorno do homem ao campo e não apenas realizar programas ou projetos agrários paliativos que se acabam com o fim de cada governo, pode amenizar as questões sociais, econômicas, culturais e políticas no campo e nas cidades – violências urbanas e rurais – melhorando a vida dos que retornarem para o campo.
Políticas públicas nesta direção poderá garantir os pequenos agricultores no campo e poderá aumentar a produção, reativando o comércio, a indústria, a saúde, a educação e a cultura.


Referências bibliográficas

DECLARAÇÃO UNIVERSAL dos Direitos Humanos. Salvador: CESE – Coordenadoria Ecumênica de Serviço. 2003.
MOVIMENTO Nacional de Direitos Humanos – Brasil. Relatório final da campanha Nacional permanente de combate à tortura e à impunidade”. Brasília: s/d.
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA – Casa Civil – Subchefia para Assuntos jurídicos. Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997 – Define os crimes de tortura e dá outras providências. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9455.htm
RECH, Luiz Roberto Dalpiaz. A verdadeira política da terra. Porto Alegre: Imprensa Livre, 1994.
RELATORIAS Nacionais em Direitos Humanos Econômicos, Sociais e culturais. Maria Elena Rodrigues (org). Rio de Janeiro, 2005.
RELATÓRIO da Rede Socil de Justiça e Direitos humanos em colaboração com Global Exchange. Direitos Humanos no Brasil 2003. Evanize Sydow e Maria Luiza Mendonça (org.). São Paulo: s/edit., s/d.

04 dezembro, 2006

As vozes que não estão no discurso oficial*

*Capítulo parte do livro: História Social. Jorge Ulises Guerra Villalobos e Maria Aparecida Cecílio (orgs.). Maringá/PR-Brasil, 2000. Programa de Pós-Graduação em Geografia-UEM, pp. 101-129 – (ISBN 85-87884-05-0). O capítulo é resultado da transcrição de três entrevistas a lideranças do MST, tendo como título: "História social: as vozes que não estão no discurso oficial".

Jorge Ulisses Guerra Villalobos
Profº. Dr. do Departamento de Geografia da Universidade Estadual de Maringá/Paraná-Brasil (UEM).
Elias Canuto Brandão
Hisoriador, mestre em Educação e doutor em Sociologia. Profº colaborador no Departamento de Ciências Sociais na Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí/Paraná-Brasil (FAFIPA); Conselheiro nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos do Brasil (MNDH-Brasil) e coordenador do MNDH no Estado do Paraná-Brasil.


Este trabalho objetiva resgatar e trazer para o público leitor dos assentamentos Rurais de Reforma Agrária – e sociedade em geral –, três histórias de vida, escutadas ao longo dos trabalhos de campo desenvolvidos junto aos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Estado do Paraná.
De fato os conteúdos dessas três histórias de vida, que aqui denominamos vozes, são parte da história social. Da história contada pelo povo e que em raras oportunidades são publicadas e lidas por um público mais amplo.
Nesse sentido, as restrições estabelecidas pelas editoras por um lado, bem como a negação do seu valor como documento por outro, são dois argumentos empregados para reduzir seu valor histórico e social.
Na contramão desse processo, acreditamos que as histórias que o povo sabe, mas não escreve, devem ser de forma sistemática incorporada aos textos escolares, assim como redigidas em papel para reconstruir uma história de exploração, de silêncio e de morte no dia a dia dos trabalhadores. Assim, vemos que é fundamental transformar nossa história em história escrita, como forma de resistência e cidadania.
As histórias que transcrevemos foram gravadas em fitas magnetofônicas, em diferentes tempos e lugares. A primeira foi realizada pelo Professor Osvaldo Heller da Silva, do Departamento de Ciências Sociais da UEM, na cidade de Londrina em 1994, à Dona Maria Izolina Pinheiro – Dona LINA. Esta senhora foi uma das precursoras do MST no Paraná.
A segunda entrevista foi realizada por Jorge Villalobos a Ireno Alves dos Santos, na cidade de Cantagalo em 1995. Ireno, de saudosa lembrança, foi um dos líderes do MST indicado pelas bases para participar como candidato a Deputado Estadual no Paraná em 1996.
A terceira entrevista também foi realizada por Jorge Villalobos, na cidade de Inácio Martins, em 1995, a Verônica, acampada por dois anos na Fazenda Papagaios.
No critério de indicação dos três depoimentos, consideramos diferentes perspectivas, tanto as de gênero como o grau de envolvimento no movimento social.
Nas transcrições das fitas realizamos uma intervenção permanente, no entanto esta não alterou o conteúdo bem como a forma da expressão dos entrevistados. Devemos destacar que a reprodução direta das vozes não se transforma por si só na história. Entendemos também que é fundamental que os próprios trabalhadores escrevam o que vem acontecendo com eles.

A primeira história: Dona Lina

A Dona Lina, ao contrário do que os livros de história costumam dizer, afirma...
Quando cheguei no Norte do Paraná em 1954, vi índios e nordestinos, pernambucanos e alagoanos, que já estavam aqui há uns 5 anos. Havia uma área muito grande com índios, muitos bichos, até onça, que chegava a atacar alguém da família. No Guaraci, uma onça chegou a ficar 2 horas atrás de uma tia minha.
Os índios habitavam em toda a área de Ortigueira e Guaraci. Os fazendeiros chegavam aqui, matavam, colocavam jagunços e faziam escravos. Um tio meu veio para cá primeiro do que nós e foi morto em 1962. Nessa época já se estava lutando contra um fazendeiro chamado Brevem que tomava as áreas. A família dele mora aqui em Londrina até hoje. Os herdeiros dele estão aí, netos e filhos. Em 1960 havia bastante safristas, caboclos que criavam porcos, os fazendeiros chegavam e pegavam a área demarcada e diziam que a área era deles e expulsavam a chumbo quem entrava ali. Isso já acontecia conosco.
Tudo isto sucedia em Londrina, Guairacá e Iporã no tempo do Bento Munhoz da Rocha e Moisés Lupión. Aquela turma toda, por volta de 1961, já se estava fazendo despejo.
Em Curitiba os fazendeiros só andavam por cima, de avião. Avistavam uma área que era só mato e tomavam posse. Para isto eles iam lá no governo e este dava uma faixa de terra e um documento.
É de vocês, dizia.
Então eles voltavam e marcavam tudo. Com um marco de ferro aqui, outro lá. É como se diz “mundo velho”, fazia a quadra. Depois vinha o despejo dos que viviam nas terras, assim os fazendeiros podiam vandê-las. Não que as terras fossem deles, mas o governo deva para eles milhares de alqueires.
Esses fazendeiros cortavam as terras em lotes pequenos de 10 a 40 alqueires e vendiam, assim como ocorreu com o Jeremias Lunardeli e Barbosa Ferras. Nesse esquema, abraçavam o Paraná inteiro e o governo falava, que aquilo lá era para eles. Então vinham, ajudados por cangaceiros, e assassinavam os posseiros que estavam nas terras trabalhando. Há muitos fazendeiros donos de terras que trabalharam ajudando no despejo, como foi João Miranda Barbosa.
Veja, as lutas sociais não são de hoje. Assim como em Porecatu, no norte de Minas Gerais, em 1943, meus parentes eram do PC do B e eram muito perseguidos. A partir daí eles calaram a boca. Hoje que renasceu o movimento social a gente não fala mais em luta, ficaram com medo, passaram por muitas repressões. Têm pessoas como o Rafael que passou 3 dias embaixo de uma montanha de terra. Ele vive até hoje, mas não fala mais e nunca mais voltou a participar.
Ele foi uma das pessoas que em 1983 estava lutando aqui em Londrina e ele também foi pequeno proprietário em Rosário e foi muito oprimido pela burguesia.
Em 1983, teve que fugir para o Mato Grosso e lá também foi massacrado em uma fazenda vizinha do Sílvio Santos. Lá houve um massacre terrível. Duzentas famílias passaram por maus momentos três dias de desespero. O massacre não foi registrado no Mato Grosso do Sul.
Esse meu tio também sofreu com o massacre e quando voltou, logo em seguida, participou de uma ocupação. Em 1984 ele já estava muito abatido, sem condições de trabalhar. Hoje ele está aqui no centro de Londrina com 72 anos.
A gente nem chegou a procurar o sindicato dos trabalhadores rurais para denunciar, porque pensávamos em sair da favela, era o medo.
Nesse momento, os Sem-Terra só pensavam em terra para trabalhar e ter a Cida que a gente tinha antigamente. Após um ano aí é que tivemos uma oposição e começamos a participar das eleições do sindicato, mas perdemos, porque o pessoal é na sua maioria bóias-frias e por isso não são politizados. Descobrimos também que os que são sindicalizados eram trazidos pelos patrões para votar em quem eles mandavam.
Os pequenos proprietários também não freqüentavam o sindicato e os assalariados das fazendas eram todos filiados ao sindicato.Nós tivemos a idéia de sair pela oposição do sindicato, porque não concordávamos com eles havíamos descoberto que o sindicato estava contra o trabalhador.
Fazia 24 anos que o Sindicato estava sob a presidência do seu Antônio. Aí a gente começou a ver que alguma coisa estava errada. Ele não entendia nada de Sem-Terra, mas jamais falava isso. Discursava sobre a reforma agrária do governo, procurava cadastrar o pessoal, mas em nenhum momento ele participou na luta conosco.
Ele não foi quando fizemos ocupação e não ia ou participava em nenhum movimento de bóia-fria. Ele se preocupou sempre em caminhar pela FETAEP, com as ordens da Federação.
Agora, esse não foi o único problema vivido aqui em Londrina ou na região. A gente tem muitos problemas, o maior de todos é com a UDR.
O pessoal da UDR mora nos distritos e se disfarçam muito bem. Eles conseguem se infiltrar no assentamento, levando sérios problemas ideológicos, uma vez que as pessoas do assentamento são pessoas simples, passando a ser perseguidas. Porem, eles não se assumem como UDR, a de pesar que em todos os distritos existe uma organização de fazendeiros. Aqui mesmo em Londrina, Norte do Paraná, a gente sabe que a UDR é muito grande, mas os fazendeiros se disfarçam porque 84% da mão-de-obra são bóias-frias e como tal, disfarçam e os enganam através dos “gatos”.
Os gatos se passam como amigos dos bóias-frias. Vai atrás do trabalhador para trabalhar e consegue enganá-lo, mesmo sabendo que o patrão é um inimigo. Os bóias-frias acreditam no gato como amigo.
O companheiro que já foi bóia-fria e que hoje está lutando pela terra, defende o gato,m porque se não fosse ele, não comia e não bebia. Só que os bóias-frias não entendem que por trás do gato estão os fazendeiros e a UDR que fazem de tudo para desmanchar qualquer organização dos trabalhadores.
Tanto eu como o Pio (Joaquim Pacheco de Lima, agente da Comissão Pastoral da Terra do Paraná - CPT/PR – região Norte do Paraná, entre 1984 e 1992)
, que somos os que mais atuamos, já na ocupação de Santa Teresa em 1989, fomos perseguidos. Por exemplo, já por 3 vezes tentaram me atropelar, disfarçadamente, mas o que foi mais difícil foi a ocupação do Guaracá, na qual, segundo o pessoal, eu mesma não conheço, chegaram a oferecer 800 mil, pagos pelo deputado federal Wilson Moreira e os fazendeiros, para quem atirasse na minha cabeça.
Os soldados leiloaram quem ia ser o primeiro. Isso a gente sabe porque um próprio policial militar chegou a confirmar, pedindo muito segredo.
Eu era uma pessoa marcada e se atirassem na minha cabeça poderiam ficar sossegados, Isso era o que eles falavam e pensavam.
Já de início eu fui uma pessoa muito visada pelo pessoal como agitadora. A gente sempre esteve ao lado dos Sem-Terra, levando sua bandeira. Junto com os bóias-frias ocupamos ônibus e prefeitura. Para eles, eu era a liderança. Então é a dona Lina que tem que morrer, pensavam e falavam.
Eu acredito que ninguém quer morrer. Eu jamais quero ser mártir. Adoro a vida e acredito que a gente tem que lutar, para ter um país melhor.
É indiferente ser um ou outro, mas nenhum de nós quer morrer, ninguém quer passar por isso. Também sabemos que estes são meios para fazer o movimento parar.
Só que a luta é essa e nós temos um projeto de transformação de sociedade e não é a burguesia que vai nos fazer calar.
A luta continua não só no movimento sem-terra, mas em todos os lados por uma transformação geral do País. A reforma agrária para nós não é somente a terra, é a transformação de uma sociedade.
A terra deveria ser o de menos, pois na verdade quem quer a terra a quer para produzir. Nós precisamos muito mais do que 5 ou 10 alqueires de terra. Precisamos de tecnologia e de infra-estrutura. Precisamos de condições para trabalhar a terra e isso nós não temos. Também precisamos de terra fértil e só estamos pegando as piores terras, as quais têm todas dificuldades para plantar.
Também temos que nos envolver na política se quisermos uma reforma geral da sociedade. Essa reforma inicia-se com terra para os Sem-Terra e também com uma transformação do poder econômico e ideológico. Isso é o que nós queremos.
Além de sem-terra e favelada, sou negra e mulher. Por isso a gente enfrenta muita dificuldade. Mas, fora isto, eu luto também pela concretização das mulheres. No início da luta eu não sentia isso, para mim não tinha a discriminação, eu a descobri na luta. Para mim a problemática é a da sobrevivência do trabalhador, mas nós como mulheres somos discriminadas, até porque nós temos uma educação arcaica. O machismo não está só nos nossos companheiros homens, mas em nós mulheres também.
Por isso nossa luta é pra que a mulher veja isso, que ela tenha condições de deixar esse tabu, no qual a mulher é só para ficar em casa cuidando dos filhos.
Sendo líder a gente não tem hora de sair e nem de chegar. Eu apanhei bastante do marido durante 5 anos para eu conseguir chegar neste lugar onde estamos hoje. Foi uma força imensa que tive de fazer para chegar até aqui. E tem muitas companheiras com mais capacidade do que companheiros homens. Elas com certeza têm capacidade e condições de desenvolver um trabalho, mas são repreendidas pelos maridos, até mesmo pela sociedade. Por que? Porquê de repente você está chegando 4 horas da manhã, o homem ou o companheiro que está vendo, pensa que você vem de um motel.
Eles observam você pegando um carro ou andando na garupa de uma moto e concluem coisas. Vêem muito mais você como um objeto do que como liderança trabalhando pela mudança e transformação da sociedade.
A gente tem passado muito por isso, por esse motivo eu priorizei trabalhar com mais mulheres e é o que eu estou fazendo. Não se trata de separar as mulheres dessa caminhada, mas de reforçar as mulheres e os companheiros homens para a caminhada. Por exemplo, a gente quer quebrar o tabu de ver valorizada a mulher pelo seu corpo. Nós queremos confirmar que estamos lutando e defendendo a mesma causa e por isso devemos respeitar os direitos dos outros.
O machismo não só dos homens, mas é também das mulheres, assim como o racismo. Aqui nesta região o machismo não é tanto porque a região foi iniciada com nordestinos. Agora na região Sul o racismo é muito grande. Em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, é muito maior entre os próprios companheiros de luta. A gente foi rejeitada em alguns momentos e eu senti isto na pele.
Por exemplo, em 1987 quando eu cheguei no Congresso Estadual do Movimento Sem-Terra, na hora que eu fui descendo do carro, um companheiro pegou na minha mão e disse o seguinte: “Esta aqui é uma negra de alma branca, esta aqui de negra não tem nada”. Eu disse: “até a minha alma é negra. Eu não tenho nada branco”. Então existe esse tipo de coisa.
Na época da campanha do Klaus Germer, eu fui fazer um trabalho no assentamento e o pessoal falava que para lá ia uma Lina, mas os companheiros não avisaram que era uma baita de uma negona que tava chagando. Quando cheguei senti na pele a discriminação.
As crianças corriam porque eram todas lourinhas de olhos azuis, de repente chega lá uma baita de uma negona de cabelo “pico mãe”.
Eu vejo que é uma luta ainda muito marcante. Ainda hoje no ônibus quando a gente começa a discutir política, levo o nome de sarará ou de bruxa. O que eu quase não tomo é nome de comunista, mas esse tipo de coisa a gente carrega muito nas costas. Então o racismo existe, está aí. O machismo a gente está tentando corrigir, se não corrigir está aí a educação que nós tivemos e que não vai ser hoje que vai mudar, mas eu pretendo trabalhar contra esse tipo de coisa.
É forte na minha família a Igreja Católica. Sou nascida e criada nela, até é por isso que minha família não gosta de falar do passado, até porque depois que nós chegamos aqui uma das separações do grupo foi por envolvimento da Igreja Católica. Embora eu jamais concordasse com as ações da igreja, a partir do momento que eu tenho outra cabeça, eu luto por uma fé. Mas minha fé é uma utopia.
Eu acredito numa fé diferente. Para mim há dois deuses, um Deus do trabalhador e um deus do opressor.
O deus do opressor é o dinheiro e o Deus nosso é a vida. Nós lutamos pela vida. Qualquer Igreja tem seu modo de reprimir, uma maneira de repressão, de timidez, contra a qual eu luto. Para mim a celebração do trabalhador está na sua expressão e ele está aí, independente da Igreja. Para mim existem duas lutas, uma do trabalhador e outra do opressor.
As vezes, eu costumo ir à Igreja e tenho discutido muito e lido a história da negritude. Eu admiro o candomblé, que até hoje tem trazido a cultura da raça negra com toda essa repressão. A minha família freqüentava, mas é muito difícil, quer dizer, quase a gente não tem tempo, mas eu creio e acredito e tenho fé, creio numa mudança diferenciada desse Deus que a igreja impõe nas pessoas.
Para mim o amor está na pessoa sofredora, e não na pessoa opressora porque ele defende o poder do dinheiro através dessa fé.
Tenho cinco filhos e a partir do momento, que eu entrei na luta, eu fiquei muito pouco tempo com eles. Mas quando estamos juntos a gente fala muito para que eles entendem, porém eles acham que eu me exponho demais e que não é por aí. Como foi na ocupação de Guairacá, meus filhos me chamaram e disseram:
- Olha, você já pensou se for presa, ou se alguém quiser sua cabeça? Apenas você ia ser um marco, sem ninguém. Poderia alguém lembrar por um ano ou dois, depois esqueceriam. Tudo bem. Você pode lutar, mas não se exponha tanto, que ainda não é o momento e não é uma pessoa só que vai fazer a transformação.
Eles pensam assim, mas eu recebo todo apoio da minha família, mesmo de meu companheiro, meu marido, não é bem um companheiro, mas hoje já há uma compreensão maior.
Hoje, a mais velha dos meus filhos, que trabalhou em casa de família, é telefonista e tem os outros que lutam também pela terra, esses não gostam da cidade, mas são obrigados a estarem aqui para estudar.
Eu acho que isso é importante, até pela dificuldade da discriminação, também porque a gente estudou até a 4ª série e isso nos trás muitas dificuldades em alguns momentos. Para entender alguma coisa, em alguns debates mesmo tem algumas coisas que a gente não consegue entender. Eu pretendo ainda voltar a estudar.
Foi o estudo que me ajudou a crescer, embora o que mais me ajudou foi descobrir que nós somos pobres, não porque Deus quis, mas porque alguém nos pôs pobres.
Que dizer, filho de rico já nasce para ser patrão, é por isso que antes de nascer já tem sua babá. E o filho do pobre já nasce sem terra para poder trabalhar, para poder ser mandado. Descobrir isso me deu mais força.
Eu acho que uma mudança de classe acabaria com essa diferença. Defendo o socialismo, embora eu não saiba como poderia ser, porque a gente só vai ver o socialismo com a caminhada, mas eu creio que o mundo melhora com o socialismo.
Em termos de ocupação de terras, eu penso que as ocupações que tivemos aqui na região de Londrina, entre meados e final dos anos oitenta, é o seguinte: todas essa ocupações não foram tão difíceis, já nas ocupações que eu acompanho no Sudoeste do Paraná o pessoal tem passado semanas sem comer, tem morrido crianças de fome.
Os bóias-frias têm passado muito mais fome do que o pessoal que ocupa terras, porém sempre têm tido vários tipos de apoio, como por exemplo, movimentos de Igreja, professores, vários grupos de movimentos que se juntam e levam comida.
Os bóias-frias, como estão dispersos, sofrem muito mais esse tipo de miséria do que o pessoal que está lutando pela terra. E outra coisa também, é que para poder trabalhar na organização o bóia-fria tem dificuldades de administrar sua propriedade, depois de conquistar a terra.
Penso que é importante, falar um pouco da minha caminhada aqui na região Norte do Paraná. Ela começou quando viemos para Londrina no ano de 1974. Chegando aqui foi muito difícil e acabamos morando numa favela e ainda não tínhamos o costume de trabalhar de operários.
Depois o meu marido começou a beber e por causa do alcoolismo não conseguia nenhum emprego. Foi difícil.
Com o tempo comecei a conversar com o pessoal e entrar na associação de bairros e daí eu passei a perceber que quando a gente morava no sítio havia isso e aquilo e observei que o pessoal da favela era trabalhador rural.
Sou migrante de Minas e em 1954 quando chegamos no Norte do Paraná, eu tinha 5 anos. A gente veio direto à região de Londrina. Meus pais e meus irmãos participaram da desmatação daqui e aí trabalhamos no plantio do café e do pasto.
Lembro que em Minas, desde que meus bisavós vieram de Angola na África, ficamos numa fazenda em Ponthalete, município de Três Pontas, em Minas Gerais. Quando morreram meus avós, os filhos ficaram com o dono da fazenda, em semicativeiro.
A minha mãe era quem fazia farinha, meu pai fazia pinga e a minha mãe ainda amamentava os filhos da patroa.
Eu me lembro um pouquinho deles, dois meses após a patroa engravidar a minha mãe devia ficar grávida, assim podia amamentar os filhos do patrão e para nós tocava o leite de cabra.
Quem mamou meu leite se chama Tais e dizem que é advogada. Eu tenho vontade de conhece-la.
Eu diria que fui nascida e criada em cativeiro.
Naquela época de Getulio Vargas, começou a sair a propaganda no rádio, de que o Paraná era melhor e meu pai ouvia muito falar “da Companhia de Melhoramentos”, e ele começou a pensar em vir para o Paraná. Assim ele foi conversar com o patrão, João Marcelino, que falou:
- O que eu posso te dar são 5 mil réis.
O dinheiro é para poder comprar alguma coisa para nós comer na estrada, sendo que toda a riqueza que o patrão tinha havia sido produzida pela minha raça.
Foi isso e mais uma galinha. Com ela fizemos um virado e embarcamos no trem de ferro para a região de Uraí, a colher algodão.
A gente não conhecia o algodão, e não conseguimos sobreviver, assim terminamos vindo para Londrina e aqui desmatamos matos e plantamos café.
Esse era um trabalho que a gente sabia fazer, ficamos como colonos pegando por 4 anos a empreita. A terra que estava com mato, derrubávamos e plantávamos café. Quando venciam os 4 anos devíamos sair para procurar uma nova empreita.
A minha família que veio dava um grupo de quase 30 pessoas, que tinha um nome. Porque todo grupo negro tem um nome. Inclusive em Coqueiral, em Minas Gerais, ainda existem primos meus que são desse grupo dos condongas, do qual eu formo parte.
Esse nome é africano e vem dos meus avós paternos Malaquias e dos meus avós maternos Condongo que, quando chegaram ao Brasil jamais diziam esses nomes, mas agora acabou.
Aqui no norte do Paraná o que dominava era nortista e durante muitos anos plantamos café, assim arrancávamos o café para plantar pasto. Ficamos como andarilhos, andando de uma fazenda para outra. Com todo esse trabalho conseguimos comprar 4 alqueires de terra, só que com o câncer do meu pai, a gente teve que vender tudo e aí ficamos sem terra.
Continuamos com o trabalho de arrendatário, mas chegou um ponto que não tinha mais terra livre, porque tudo era pasto e gado.
Em 1976 eu já era casada e tinha os filhos, foi quando viemos para a cidade. O marido agricultor, todos nós agricultores. Foi muito difícil. Lembro que trabalhamos três anos de doméstica, de bóias-frias, de tudo, só faltava roubar. Fazíamos tudo quanto era serviço para sobreviver.
A gente ficou desesperada quando o marido dói internado no sanatório, isso aconteceu em outubro de 1983, as crianças eram pequenas e somente eu para sustentar a família. Foi nesta época que encontrei um boletim, bem no centro da cidade que dizia assim:
- Movimento dos sem-terra máster, movimento dos sem-terra do Sul do Norte.
Quando eu olhei aquele boletim eu pensei assim:
- Oh!!!, é isso que eu quero.
A gente já conhecia um pessoal que era de uma tendência do PT, era o pessoal do PCB. Os conhecia porque eles já atuavam com a gente na favela e corri atrás deles e levei aquele boletim e disse:
- Dr. Arnaldo é isso que eu quero!!!
Ele olhou e disse:
- Você não quer isso, porque você é doméstica, isso é para pessoas da terra.
Eu disse:
- Eu sou doméstica porque eu não tenho terra.
Com aquele boletim em mãos eu fui para a favela e comecei a falar com as pessoas, com 15 dias a gente já havia formado 3 grupos de Sem-Terra em 3 favelas, então, com aquilo eles disseram para conversarmos com um tal de padre Nilo. A partir daí começamos a conhecer o Movimento Sem-Terra.
Aqui a gente não fala em camponês, esse termo é mais a nível teórico. Bóia-fria se considera bóia-fria mesmo e não camponês. Mesmo lá no campo, o pequeno proprietário não se considera como tal. A palavra camponês não é bem vista entre os trabalhadores rurais.
Mas, a partir do encontro que realizamos em janeiro de 1984, na cidade de Cascavel, foi que eu comecei a perceber que aquele movimento era muito maior do que eu enxergava. Eu acreditava que era um negócio assim pela necessidade. Eu jamais pensava que podia ter um envolvimento político geral tão grande. Assim eu já comecei a conhecer e assumir tarefas, nesse mesmo ano organizamos uma assembléia regional, do movimento dos sem-terra do Norte do Paraná, no dia 10 de maio de 1984 e participaram mais de 300 pessoas. O movimento no Estado já estava coordenado, havia um entrosamento e a partir disso no dia 9 de agosto, do mesmo ano, organizamos a primeira ocupação de terra aqui em Londrina. Era uma área que ia ser uma penitenciária agrícola e estava abandonada a 6 anos.
No final daquele ano, lembro bem que, houve outra ocupação de favelados nas terras da COAB aqui em Londrina e em União da Vitória. Também por falta de experiência e melhor distribuição, o movimento ficou sendo conhecido mais como movimento urbano dos sem-casa do que dos sem-terra. Já em 1985 houve outra ocupação da qual eu também participei, nas terras da COAPAR em Rolândia, com o movimento dos bóias-frias e favelados, que também não conseguiram estruturar suas forças e as famílias após caminhadas e procuras acabaram se dispersando.
É também importante dizer que no final de 1986 houve a luta das 130 famílias de Apucaraninha, as quais moravam em São Gerônimo da Serra, onde eram ocupantes posseiros na terra dos índios. Essa luta foi muito grande, foram dois anos para se conquistar o assentamento Apucaraninha que hoje está bem estruturado e as famílias que lá vivem estão em boas condições de vida.
Depois, no final de 1988 houve uma outra ocupação, também de favelados de Londrina que foi na fazenda de Pari-Paró, só que esta fazenda já estava desapropriada para o assentamento de Apucaraninha. Lembro que houve um acordo e esse pessoal afastou-se da área e dois anos depois ocupou a fazenda Santa Teresa. Esse pessoal fez uma boa luta, uma boa caminhada e eles ocuparam a prefeitura várias vezes, pegaram ônibus e tudo.
Também juntamente com o trabalho da Comissão Pastoral da Terra, os agricultores conquistaram o assentamento Serraria. Eu acompanhei todo esse movimento, não só como militante, mas também como primeira suplente de vereadora, em Londrina, pelo PT.
Essa época foi muito importante, porque descobrimos a mentira ideológica da hierarquia evangélica, a gente não fala só de uma Igreja, todas as igrejas que dizem que Deus não está aqui, eu até os 38 anos tinha medo do pecado, do diabo, assombração, de repente comecei a ver isso de maneira diferente, quer dizer, eu acredito não num Deus lá em cima, mas em um Deus que caminha junto com a gente, com a verdade.
Com a ida do MST para Brasília, em 1986, descobri também que quem nos oprimia era o PMDB, foi aí que eu senti vergonha de defender tanto aquele partido, e então eu assumi o PT, pois é o único partido que está ao lado do trabalhador e isso foi muito importante pra mim, foi aí que eu renasci com 38 anos.
Parece que até os 38 anos eu não conseguia ver o mundo como vejo agora, foi tarde, mas estou aí na luta, acho que jamais deixarei de lutar”.

A segunda História: Ireno Alves dos Santos

Ireno Alves dos Santos analisa a conjuntura do movimento de luta pela terra no Brasil e afirma que agora a grande imprensa e os meios de comunicações de massas trouxeram outra vez a questão da luta pela terra às primeiras páginas dos jornais.
É porque, sem dúvida nenhuma, a própria recessão e a própria crise que estão abatendo o país têm colaborado e muito para o aumento do desemprego, como também com o fato de pequenos agricultores estarem perdendo suas terras e acabando nas cidades, muitas vezes ficando na marginalidade. Tudo isto tem aumentado significativamente o potencial do movimento para organizar as ocupações e, então na verdade, se fôssemos ver hoje, o País está num momento importante para que a esquerda possa avançar.
O nosso grande desafio é como melhorar o nosso método para trabalhar com o pessoal que não está mais na roça, que está à beira da cidade. Se você observar os grandes centros urbanos hoje, pode ver um número de desempregados e ex-trabalhadores rurais que ali estão e se você fizer uma pesquisa, veria que o número de interessados em voltar para o campo é muito grande.
Eu acho que sem dúvida nenhuma estamos num processo muito interessante para podermos avançar.
Eu penso também que uns dos problemas que existem, é que a nossa esquerda brasileira é muito complicada e muito dividida. Ela balança muito fácil por qualquer coisa e não estamos conseguindo aproveitar este momento.
Mas sem dúvida nenhuma para nós do MST, depois do Terceiro Congresso Nacional do Movimento, nós conseguimos dar um salto, uma animada na nossa militância e como resposta estão aí as preocupações a nível nacional. Podemos ver acontecendo grandes ocupações, como é o caso de São Paulo e de outros estados brasileiros.
Todo esta movimentação também nos mostra que temos dois inimigos declarados, sem contar com o terceiro que são os próprios fazendeiros e entre um deles está o próprio Estado com o seu aparato repressivo, coordenado pela polícia. Vale lembrar o que aconteceu em Corumbiara e também no Paraná. Isso quer dizer que a União e os Estados têm demonstrado incompetências em fazer a Reforma Agrária. Quer dizer, que o Fernando Henrique Cardoso se comprometeu no programa de governo que iria assentar 40 mil famílias e até agora se pegarmos as áreas desapropriadas ainda no tempo do Itamar, não dá para assentar 15 mil famílias.
O segundo inimigo que nós temos é o judiciário, que se demonstra muito incompetente em sua responsabilidade, portanto esse é um dos inimigos declarados que nós temos. O Terceiro inimigo são os fazendeiros que se armam contra nós e dizem que nós é que somos violentos. Mas a própria imprensa está mostrando o arsenal de armas e a organização deles para tentar impedir que os trabalhadores conquistem seus direitos.
Como dizia, vejo que foi no Terceiro Congresso que nós conseguimos avançar muito. Porque na verdade a Reforma Agrária não interessa apenas aos Sem-Terra, pois com uma família assentada no campo está se tirando uma família da cidade e lá ela poderá produzir. Está claro para a sociedade que com a realização da reforma agrária nós vamos diminuir com certeza o desemprego.
Os Sem-Terras têm chamado todas as organizações e os partido políticos para que se somem a nós para irmos juntos, numa união forte, conseguir de vez a realização da reforma agrária, porque estamos convencidos que a reforma agrária interessa a toda a sociedade brasileira.
Tudo isto nos coloca numa responsabilidade bastante grande: a de conduzir a luta do campo, a luta da reforma agrária no nosso país. O processo de fato nos converteu numa referência nacional, isso porque na verdade, com todas as crises ideológicas que a esquerda tem passado, nós do movimento nunca vacilamos em relação à reforma agrária.
Nós não temos vergonha, não temos dúvida nenhuma em assumir de cara a nossa bandeira socialista e lutar por isso até o fim. Isso também nos tem trazido uma grande responsabilidade na atual conjuntura. Várias organizações têm tido dúvidas no rumo a seguir, nós, porém não temos dúvida alguma, o que nós queremos é a reforma agrária, é a construção do socialismo. Queremos mudar este país.

A terceira História: Verônica

Sempre fomos uma família pobre. Meus pais sempre trabalharam na roça e éramos uma família bastante numerosa. Tivemos dificuldades, falta de roupas, calçados. Praticamente não tínhamos nada em casa. Que bom seria se a gente tivesse a roupa que meus filhos têm hoje. Quando criança eu ia de pé no chão para a escola e muitas vezes a professora nos mandava para o sol para esquentar, porque não suportava ficar na sala de aula passando frio.
Praticamente sempre foi assim. O plano de meu pai era comprar terra, sempre comprar terra. E nós sempre trabalhando na roça. Quando eu tinha dez anos, compramos uma terra que era do Estado, isto no Rio Grande do Sul. E somente tínhamos os direitos dela. Nisso chegou uma certa época que o pessoal falava do Paraná e o meu pai começou a querer vender a terra porque já estava meio fraca e os granjeiros estavam tomando conta das melhores terras do Rio Grande do Sul e somente sobrava para o pequeno agricultor terra ruim, de pedra.
Assim começou arrumar negócio. Fechando negócio no município de Capanema. Viemos e moramos em três famílias num porão. Era um montão de crianças e todas íamos juntas a trabalhar na roça. A minha mãe que já havia sofrido e ficado desesperada com a vinda para Capanema, quando voltou a ver que as coisas faltavam, entrou em crise. Aí o pai vendo tudo isto tentou arrumar uma terra para a gente morar de agregados e foi aquele sacrifício. Ele ia cedo e só voltava de noite. Tudo isto pra plantar um feijão que a queimada matou.
Assim, perdemos novamente o nosso trabalho e o pai foi para Planalto tentar arrumar uma outra terra e voltar a plantar de agregado. E fomos morar num biribinho de dois metros quadrados de chão.
Foi nessa época – 1972 – que eu tratava do gado alheio para ganhar o leite. E durante este ano com a madeira serrada fizemos uma casinha de cinco por quatro com telhas, isto num meio de uma capoeira. Na nossa roça havia frutas de laranja e mamão. Mas trabalhar até de noite, até enquanto nós enxergávamos. Assim, fomos trabalhando, até que um dia saiu um brique – negócio – pela terra e assim meu pai foi para Realeza a fazer o contrato. Foi duro, até que nós conseguimos pagar aquele dinheiro, trabalhando direto na roça. Toda criançada e até a mãe grávida.
Ela teve uma menina que acabou falecendo e ficou treze dias no hospital. A partir dali o pai se levantou um pouco, só que nós éramos dez irmãos e começamos a ficar grandes. Compramos maquinários, tudo financiado no Banco. Enquanto isto, nós trabalhando.
Só que no momento de sair de casa, ele foi desconversando o que havíamos construído com nosso trabalho, falando porque eu não me casava com um cara que tivesse tudo e que só faltasse pôr a mulher para dentro de casa.
Ao final ele disse:
- Se você quer casar com esse teu noivo que é pobre, pode casar, só que eu não vou te dar nada, nem casa, nem terra.
A gente ficou numa pior. Porque meu pai sempre falou que para os filhos homens ele ajudaria a comprar terra, mas filha mulher que casasse, era carta fora do baralho. E o homem que quisesse casar com sua filha devia comprar de pinico para cima.
A minha vida com meu pai sempre foi trabalhar direto na roça. Quando eu saí de casa, ele estava bem de vida. Havia duzentas e poucas cabeças de criação, milho, feijão, arroz. Tudo que eu ajudei a plantar e a criar. Mas como eu era filha mulher, não ganhei nenhuma cozinhada de feijão, de arroz. Nenhuma lata de banha ou um porquinho para começar a criar. O único que eu levei foi uma novilha que a mãe me deu e tivemos ainda que tirar escondida.
Assim comecei a minha vida de casada. Fomos embora para Capitão e fizemos uma casinha em cima da terra do sogro e ali moramos por dois anos. Arrendávamos também uma terra de uma viúva com três alqueires, que ficava a três quilômetros de casa. Logo fiquei grávida do piá e trabalhava direto na roça. Meu companheiro falava que eu não fosse e dizia:
- Onde é que se viu mulher, eu mando ficar em casa e você não me obedece?
Mas eu fui criada naquele sistema, a semana inteira na roça, nem ficava para fazer a limpeza da casa.
Daí plantamos nessa terra por dois anos e meu primeiro filho nem pude cuidar. Não é que eu não quisesse, a verdade é que não tive tempo, somente dava de mamar no meio dia e de noite.
Saía cedo para roça e às vezes voltava a noite. Ficava lá direto, com os peitos inchados e o nenê chorando em casa, enquanto a sogra cuidava, e eu na roça trabalhando.
O sogro vendeu aquela terra e nós tivemos que sair. Fomos morar em outra e nela fizemos pasto. Plantamos milho e continuamos um sofrimento que nossa! Dessa vez que a minha mãe veio nos buscar, dizendo que o pai havia comprado mais um pedacinho de terra e que como nós estávamos vivendo a vida, aquilo não era vida.
Voltamos para Planalto. Nessa época, eu já tinha o Márcio e a Márcia. Mas eu estava acostumada a ir sempre na roça porque sempre havíamos morado perto do sogro e da sogra que cuidava sempre das crianças. Mas agora todos ficavam longe e eu passei a ficar nervosa porque meu companheiro estava sozinho na roça.
Assim fui arrumando tudo que precisava na casa. Limpei tudo em volta. Fizemos chiqueiro e galinheiro, isto tudo num mês. Mas o pai que morava a quatro quilômetros dali, começou a ficar muito enérgico, a querer mandar em casa. Quando chegava uma visita, ele chegava a dizer:
- Vocês podem ir trabalhar que eu vou conversar com a visita.
Mas a gente já não estava acostumada a ser mandada como antes. Em dois meses a coisa havia piorado e foi quando veio o meu sogro e ofereceu pagar nossa mudança para Capitão. Márcia tinha trinta dias, nem havia terminado minha dieta.
Começamos tudo novamente. Meu companheiro foi arrumar uma terra com um primo e durante o primeiro ano fizemos roa de milho e colhemos dez sacos de milho e muitas vezes as crianças chegaram a dormir sem janta.
Eu já estava grávida do terceiro filho. Eu não gosto nem de lembrar o que a gente passou lá.
Esse primo dele levava tudo no caderno. Nós trabalhávamos por hora e se nós terminássemos um serviço em cinco horas num dia, ele anotava as que faltava para completar um dia inteiro e dizia para meu companheiro:
- Pedrinho, você ficou me devendo tantas horas de serviço hoje.
Nesse sofrimento todo, conhecemos um cara do Sindicato. Ele nos orientou para que se nós quiséssemos um pedaço de terra, nós poderíamos participar de umas reuniões nas quais se discutia a questão da reforma agrária. Chegamos a conclusão e até brigamos muitas vezes com meu companheiro porque eu queria vir um pouco para o movimento e ele não queria. Mas fomos participar de duas ou três reuniões. E tudo foi meio rápido. E partimos para a luta.
Quando chegamos aqui, vindos de Guarapuava, tentávamos uma espiadinha, porque nós viemos em caminhão de lona e somente enxergamos na estrada capoeira e mato. E chegamos aqui nesta área.Lembro que nós nos arrumamos juntos com o grupo de Capanema porque nós éramos só em três famílias de Pérola do Oeste. A vinda foi no dia cinco de agosto e ficamos esperando o caminhão na beira do asfalto. O caminhão ao vir, deu sinal de luz, mas nós ficamos em dúvida. Ficamos para trás.
Assim, quando chegamos no acampamento, já havia muitas pessoas.
Em casa ficaram todos chorando. Foi uma choradeira só, que não ia dar certo, mas nós estamos aqui.
Quando o caminhão chegou, o pessoal descarregou as mochilas e nos juntamos ao grupo do Célio e fizemos nosso barraco. Ficamos seis meses junto com este pessoal. O lugar ficava perto de um banhado na parte baixa da área.
O Célio falava que teríamos que ser rápidos, sair todos do caminhão e organizar os barracos. Quando isto aconteceu, os que estavam próximos da varanda do caminhão tentaram pôr-se de pé, porém não conseguiam. As pernas não respondiam e terminavam caindo. Sequer se escutava risadas. Os pistoleiros estavam à espera. Devíamos sair e correr. Não escutamos tiros e, se houve, não nos demos conta. Era uma desordem. Ninguém sabia direito o que fazer. Passadas algumas horas, os caminhões com as coisas de casa e trabalho começaram a chegar, ao mesmo tempo que fileiras de outros, com os sem-terra, entravam no acampamento.
Outros, no entanto, procuraram diferentes meios para vir até a área.
Vieram para Cantagalo após reuniões no Sindicato de Medianeira na presença do Presidente do Sindicato de São Miguel do Iguaçu, o sr. Miguelzinho, o qual dissera que havia uma área desapropriada pelo INCRA, no município de Cantagalo, sendo que, por não terem condições de vir, solicitaram auxílio do Padre Jorge e da Irmã Ernesta, como também da Prefeitura Municipal de Foz do Iguaçu. Com os recursos arrecadados se dirigiram até o Município de Cantagalo, na área pré-determinada.
Fizemos um fogão e cozinhávamos fora. Era um fogão de barro.
Algumas famílias começaram a desistir e nós firmamos o pé desde o início. Durante vários dias, foram centenas de pessoas em movimento. Mais caminhões chegando e outros saindo com os que desistiam. Não são todos que conseguem suportar as condições do início da ocupação.
Na ocupação, mais ou menos trinta por cento dos acampados não tinham o que comer. A nossa condição era tão precária, que nem podíamos tomar banho. Os doentes não tinham assistência médica. Vinte e duas crianças morreram e um dos companheiros foi assassinado pelos pistoleiros.
As noites na área, iluminadas pelas fogueiras, sempre trazem consigo a possibilidade do ataque dos jagunços. Somente as crianças conseguiam dormir de cansadas de tanto brincar, enquanto os adultos montavam guarda e contavam as estórias da luta e pensavam em voz alta nas possibilidades de um futuro que estavam construindo.
A medida em que chegavam as famílias, os grupos começaram a se formar: primeiro pela proximidade dos municípios e por relações de parentesco; eram amigos, primos, irmãos e muitos desconhecidos, gente que nunca se tinha visto até agora, mas que compartilhavam em comum o estar naquele lugar. As primeiras providências que os mais experientes tomavam foi organizar a administração da área. Uns se propuseram a fazer a guarda, para se protegerem dos pistoleiros que rondavam. Outros foram cuidar da saúde, e assim por diante, educação, horta e cozinha.
Em cada um desses setores, uma comissão de assentados para administrar, escolhidos na assembléia, da mesma forma que a comissão mais importante: a de negociação, pois sem ela a consolidação da área não existiria. Naquela comissão estavam os líderes dos grupos, com capacidade de exigir dos responsáveis, providências na regularização da área para projeto de Reforma Agrária.
Lembro-me que numa assembléia fui escolhida e assumi como coordenadora de saúde. Lembro também que no nosso grupo havia uma velhinha que ficou doente e “levamos ela” para Inácio Martins e quando chegamos lá, o médico se recusou a atendê-la e mandou ir para Guarapuava. Tivemos como esta muitas outras situações. Éramos muitas famílias e vinha gente de todo tipo e de todos os lugares. Durante os primeiros dias foram escolhidas as lideranças através das assembléias: o pessoal da executiva, os negociadores e nós tivemos muitos cursinhos. Nestes cursinhos eu fui aprendendo sobre saúde.
As assembléias começavam cedo todos os dias. As primeiras informações se referiam à estrutura interna do acampamento e às alternativas para os trabalhos do dia. A disciplina na área era rigorosamente respeitada, porém nada era perfeito.
Num daqueles dias, Lorival, um senhor de uns 41 anos, tinha saído três vezes na semana para procurar gás. Como a saída requeria passar pelo portão da área, começou a chamar a atenção. Será que consome tanto gás aquele homem? Era a pergunta que ficou no ar. No final de uma daquelas semanas, ele ia em direção à quarta saída e a vigilância não conteve a curiosidade:
- Escuta, que tanto gás procura o senhor?
A resposta não se fez esperar. O butijão de gás estava adaptado para transportar um líquido branco e perfumado elaborado a partir da cana. Rapidamente o senhor Lorival reconheceu a sua esperteza e deixou, na entrada, a sua garrafa. Durante os dias seguintes, uns bambus tinham sido reconhecidos também com o mesmo fim.
Na assembléia se acordou que a bebida devia ser muito controlada, pois com tanta gente junta, o álcool podia trazer alguma desgraça. O acordo foi geral e durante meses não se viu desfilar cachaça pelo acampamento. O chamado à ordem foi feito também para os engraçadinhos que gostavam de mexer com a mulher dos outros, uma prática dissimulada.
O esquema de segurança previa o aviso com foguetes, quando alguma coisa grave fosse ocorrer, principalmente se a polícia viesse cumprir uma ordem de despejo. Os códigos estavam estabelecidos e como era uma possibilidade, os sinais foram decorados imediatamente. Num sábado, ao meio dia, uma das guardas, a que estava mais próxima do acampamento, escuta um estouro de três rojões. Aquilo era o sinal da chegada das forças policiais. Imediatamente se seguram mais dois estouros, parecia a confirmação do fato. Alcebíades correu, dando gritos em direção ao acampamento e as pessoas começaram a se preparar, uns se escondiam debaixo dos colchões, outros foram cortar taquara para defender a área e todo o acampamento se enfileirava em direção ao que tinha sido estabelecido: proteger a primeira guarda e defender o local.
Durante vinte e cinco minutos, mais de 1.600 pessoas se mobilizaram num caos que não se entendia. Na subida que dava até o local da entrada, centenas de homens corriam, outros desciam à procura de algo que tinham esquecido e era importante para se defender da polícia, que, segundo experiências, chegava batendo para valer. Passada já meia hora, ninguém da primeira guarda desceu para confirmar o número de policiais que vinham, ou como vinham. Três homens subiram até o local, distante uns 1.500 metros, onde estava instalada a primeira guarda. Quando chegaram, viram que estes não se tinham inteirado de nada, somente que estava havendo uma festa de matrimônio perto de Sobradinho, e era uma festa e tanto, porque estavam estourando até foguetes.
No domingo ainda não se tinha encontrado o apressado que provocou a correria de todos. Até hoje é um segredo.
Na cidade, dois meses e meio depois de nossa ocupação, a palavra “sem-terra” era ainda sinônimo de invasão e violência. Exemplo: um caminhão lotado de trabalhadores bóias-frias voltava, ao final da tarde, aproximadamente dezenove horas, em direção ao povoado. Não era comum que retornassem tão tarde; em geral, o horário era às cinco e trinta. Sem conhecer a situação do caminhão, um garoto que fazia o caminho da escola até a casa, a pé, se viu surpreendido pelo veículo com tantas pessoas que ele, imediatamente, associou aos sem-terra e às promessas de invadir a cidade. Desde a ocupação, em várias oportunidades, os acampados em massa fizeram manifestações em frente à Prefeitura para exigir atendimento no hospital.
O garoto passou na madeireira que fica no caminho da sua casa e contou o que viu ao encarregado, que imediatamente comunicou a situação para a polícia, na cidade: ‘os sem-terras estão indo para invadir e saquear a cidade’. A notícia chegou à casa do prefeito, que ligou para o padre, ao mesmo tempo que a polícia entrava em contato com a escola.
As aulas foram suspensas aos gritos, algumas pessoas que tinham carro saíram em direção oposta de onde vinham os invasores, deixando fora da cidade os veículos. Nas ruas, os alunos corriam para as casas e os professores se apressavam em fechar a escola. Nas casas, do centro da cidade, todas as luzes foram apagadas, a cidade ficou na penumbra, sequer a polícia se atreveu a manter a delegacia aberta. Em poucos minutos, a cidade morria de pavor.
O medo e o pavor não existem somente em nós que ocupamos, mas também nos outros que não conhecem a gente.
No acampamento, a escola era improvisada sob a lona preta e tinha começado a funcionar com três turmas, com professores do mesmo acampamento. Três mulheres que tinham alguma instrução, uma a quinta série e as outras duas a terceira, se ofereceram para a atividade. As crianças, pela manhã, entravam alvoroçadas sob aquela lona, que era a escola. Alguns materiais tinham sido doados por padres e irmãs da região e outros pertenciam às próprias crianças.
Veja o que diz este material da Comissão Pastoral da Terra sobre nossa situação. Eu vou comentar.
No começo do ano de 89, pistoleiros assassinaram a tiros um pequeno agricultor que mantinha amizade com os ocupantes da fazenda. Em março do mesmo ano, os pistoleiros voltaram a agir, desta vez assassinando também a tiros o motorista Ezequiel de Oliveira, da ervateira Bonatto, que transportava erva mate colhida pelos Sem-Terras. Em abril do mesmo ano, o quadro se agrava ainda mais. Há ameaças de morte para as lideranças dos Sem-Terra, inclusive para agentes de pastoral e da Igreja. Em maio de 89 os pistoleiros voltaram a atacar ateando fogo a um caminhão que estava a serviço dos acampados. Em agosto, os pistoleiros seqüestram 3 sem-terras e 2 motoristas, além de prenderem 2 caminhões carregados de palanques e 1 ônibus que trazia passageiros de Laranjeiras do Sul para a ocupação. Maltrataram seus passageiros e o motorista, inclusive batendo em mulheres e crianças.
No dia 31 de janeiro de 1990, os pistoleiros prenderam mais um motorista que transportava alimentos, soltando-o depois de conseguir a promessa de que voltaria para o seu local de origem. Em maio de 90, foram presos e espancados brutalmente 3 acampados que voltavam de seu trabalho, com compras. No dia 7 de julho, 40 pistoleiros fortemente armados voltaram a atacar as famílias. Entrincheirados, eles permaneceram atacando desde a madrugada de sábado até o cai da noite de Domingo. Balearam João Maria Ribeiro e assassinaram José Dias. Os pistoleiros, portando armas pesadas, foram trazidos do Mato Grosso e outras regiões, numa ação articulada pelas Cia. Pinheiro Indústria e Comércio e pela TERPLAN. Esta última estava contratando seus pistoleiros em Curitiba, na sua própria sede, por 20 dias de serviço a um preço de quarenta e cinco cruzeiros para fazer o despejo. O delegado de Polícia Sebastião Toborda e o Prefeito Pedro Ivo, de Inácio Martins, foram coniventes e incentivaram aqueles atos já que transportavam, instruíam e permitiam a livre circulação dos pistoleiros.
Só que a grande parte da miséria do acampamento foi causada por um batalhão da polícia militar. Vinte dias após a ocupação, montaram guarda na entrada da fazenda impedindo que entrasse qualquer tipo de sementes, alimentação e até mesmo objetos de uso dos acampados. Com 90 dias saíram os policiais e veio então um grupo de pistoleiros com armas pesadas e atacavam para valer.
Nesta mesma época, nós começamos a fazer palanques para vender e acontecia que os caminhões eram presos, os motoristas eram torturados e os pistoleiros ficavam com a carga. Houve uma época que, para trafegar na estrada que ligava o acampamento à cidade, tínhamos que pedir ordem por escrito na firma para os pistoleiros deixarem passar.
A situação chegou a um tal extremo que até os ônibus em vias públicas eram patrulhados em busca dos Sem-Terra e os padres eram jurados de morte junto com os acampados.
Para não finalizar

A perspectiva com a qual finalizamos este trabalho é que em breve possamos ler as múltiplas histórias dos trabalhadores, e que todas elas estejam escritas em papel pelos próprios trabalhadores organizados. Assim como os livros didáticos incorporem estas narrações no material de leitura dos alunos de ensino fundamental e médio.

Referências bibliográficas
GÖRGEN, S. (1991). Uma foice longe da terra: repressão aos sem-terra em Porto Alegre. Petrópolis: Vozes.
GÖRGEN, S.; STÉDILE, J. P (orgs) – (1991). Assentamento: a resposta econômica da reforma agrária. Petrópolis: Vozes.
TONELLA, C.; VILLALOBOS, J. U. G.; DIAS, R. B. (1999). As memórias do sindicalista José Rodrigues dos Santos: as lutas dos trabalhadores rurais do Paraná. Maringá : Eduem.

O PODER: Conquistá-lo e democratizá-lo


Elias Canuto Brandão
Historiador, mestre em Educação e doutor em Sociologia.
E-mail:
canutobrandao@hotmail.com

Quando se fala em poder, a primeira coisa que lembramos é dinheiro, representação política ou econômica, propriedade, bens ou conhecimento.
Poder é a capacidade de alguém fazer ou realizar alguma coisa com ciência e propriedade. Não é simplesmente ter a força de decidir e perpetuar vontades próprias, de grupos ou tendências, através de decisões unilaterais, forças políticas ou econômicas, quando não através da caneta.
Poder é, entre outros, o exercício de governar uma entidade, uma instituição, um órgão público ou uma empresa, o que não significa governar de forma individual e de gabinete.
O poder mais forte e resistente é o poder sustentado pela vontade e organização popular, resultado de projetos e ações políticas, sociais e culturais com a participação popular direta. Quando desta forma realizado, não há forças e grupos políticos e econômicos capazes de resistir.
A força popular quando consolidada de fato, nada a detém ou a quebra. E quando bem organizada, preocupa as forças políticas e econômicas tradicionais.
Constatamos na teoria e na prática, inclusive pelas institucionais educacionais, que poderes são os das autoridades e órgãos governamentais: Legislativo, Executivo e Judiciário, sendo verdade apenas em parte.
Particularmente, considero o Poder Popular – e pouco se fala dele – um dos mais importantes de todos, vez sustentar os demais através dos impostos. Este Poder, quando organizado, amedronta os demais, levando-os a criar subterfúgios (leis, normas ou decretos) que impossibilite a organização social dos cidadãos, exercendo sobre os que participam do Poder Popular (os grupos organizados) a perseguição direta e indireta, pessoal ou coletiva.
Cada Poder tem sua força, seu poder e sua função. O nome de cada Poder deixa claras suas funções e responsabilidades. Vamos a eles.
Ao Poder Executivo cabe administrar (executar) o que arrecada, prestando conta à sociedade e ao Tribunal de Contas, a forma de arrecadação e onde foi gasto. Cabe elaborar os projetos, programas e planos de investimentos (PPA, LDO, LOA...), assim como políticas públicas das mais diferentes áreas, encaminhando para os órgãos, instituições ou poderes competentes e colocando-os em ação.
Ao Poder Legislativo, cabe fiscalizar os atos do Poder Executivo, desde a verificação da organização da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), até a execução de tudo o que lá descreve, analisando se os preços apresentados estão corretos, visitando a obra para acompanhar a qualidade do serviço e não realizando assistencialismo – serviço de uma Fundação Social – ou leis de nome de ruas ou mesmo apadrinhamento através de Lei, obras já contempladas na LDO, PPA e LOA. Cabe também acompanhar e criar leis gerais e específicas que pense e organize a cidade a curto, médio e longo prazo, elaborando sempre as seguintes perguntas:
Que Cidade/Estado queremos para o futuro?
Que administração queremos para o Município/Estado?
Que tipo de legisladores e que tipo de atuação devem exercer a curto, médio e longo prazo?
Qual a verdadeira função do legislador e o que deve de fato fazer?
Que tipo de acompanhamento o legislativo deve realizar sobre o que é aprovado pelo Poder Executivo? E, que tipo de relação deve ter com os demais poderes e com o povo?
Que assessoria o legislador deve prestar ao Poder Executivo para que os projetos aprovados sejam colocados em prática?
O Poder Judiciário tem poder de julgar os erros ou dúvidas de acertos de todos os demais Poderes. Cabe a ele o direito de julgar, arbitrar e decidir a sentença sobre o reclamado. Não lhe cabe interferir sobre os demais Poderes sem que antes tenha sido acionado por alguém da sociedade civil, órgão público, instituição ou entidade de caráter público ou privado que tenha seus direitos atingidos moral, político, cultural, religioso ou economicamente.
Entre todos os poderes, o Poder Popular, na atual conjuntura, considero como o mais importante. Não há poderes que resista a força do Poder Popular organizado. Se todos os grupos organizados formal e informalmente da sociedade estabelecerem políticas de ações conjuntas, os três poderes – individual ou coletivamente – atuariam como atuam.
Qualquer análise, por mais simples ou empírica que seja, constata que os poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário atuam observando proveitos próprios ou corporativistas em detrimento do Poder Popular e da sociedade civil organizada ou não. Cabe ao Poder Popular organizar-se, pressionar, negociar e conquistar espaços. O Poder Popular organizado derruba corporações, altera decisões, muda leis e organiza o setor público e privado, conquistando respeito.
Consideremos aqui o papel e a função dos partidos políticos, estudando-os em relação ao processo de mudança política e econômica, uma vez que as mudanças não acontecem por si e em si, independentes dos partidos políticos.
Tratando-se do Brasil, ninguém atinge o Poder público se não pela eleição direta ou indireta, representado por um Partido.
Para tal é necessário aprofundar as discussões do que seja um Partido Político, estudando seus objetivos e intenções, além de verificar seu trajeto e representações sociais, políticas e econômicas, analisando as ações das pessoas que dele fazem parte e a quem representam, inclusive os erros e acertos cometidos no trajeto partidário e eletivo.
Incentivar a Participação Popular em um partido é peça fundamental para a garantia da conquista do Poder público e político. Partidos políticos sem sustentações numéricas de filiados, estão sujeitos ao desaparecimento.
Neste processo, não basta participar e conquistar o Poder sem transformar o Poder e os partidos políticos que dão sustentação aos partidos. É importante democratizar o Poder e os partidos. Ganhar o Poder ou adentrar em um partido não é difícil. Democratizá-los são desafios aos participantes.
Em todas as cidades e municipalidades os poderes públicos são conquistados e pouco ou quase nada se muda. Mudam os personagens, não as políticas e as ações. Em alguns lugares saíram personagens da direita e assumiram personagens da esquerda que deram continuidade nos projetos da direita. Para que haja mudanças reais nas instituições e em seus projetos, programas e políticas, são necessários mudanças de mentalidades, comportamentais, políticas, educacionais, sociais e culturais.
Ganhar o Poder significa ganhar ou eleger um Projeto de Governo e para isto, antes de ganhá-lo, durante a elaboração do mesmo, é necessário algumas interrogações:
a) O se quer conquistar e que tipo de Poder se almeja;
b) Como se quer cada secretaria, diretoria, gerência ou coordenadoria (o que cada uma faz e o que se quer dela? qual sua importância?);
c) Como são elaborados os contratos e licitações;
d) De que forma as receitas, despesas e dívidas são contraídas;
e) O que se objetiva com as Leis (LDO, LRF, PPA, LOA, LDB, Lei Orgânica, Plano Diretor, entre outras) e para quem fazê-las? Para alguns ou para todos?
A discussão e implementação das temáticas expostas, se forem desacompanhas de um Planejamento Estratégico Participativo que mapeie e avalie amigos e inimigos, forças favoráveis e contrárias, recursos humanos e financeiros, dificuldades e apoio, encontrando alternativas para efetivá-las, com um planejamento de avaliação periódico, poderá fracassar em sua execução.
Não basta planejar se o objetivo não for executar. Fazer por fazer planejamento é pior do que não fazer. Os erros políticos causados pela não execução do que se planeja, resulta em prejuízos políticos, organizativos e participativos à sociedade e ao partido político envolvido no processo.
Por falta de planejamento participativo e de constante verificação dos avanços e recuos, perde-se a noção do que se faz e se fez, tendo a sensação de que se faz sem estar fazendo. Pensa-se que está ganhando, quando está perdendo.
Pior, é o gestor ter a sensação de estar realizando, neste caso enganado pelos seus assessores diretos e indiretos, e todas as sugestões apresentadas por quem não esteja no esquema da administração/execução serem tidos como inimigos políticos.
Executor, Legislador ou Juiz que não verifica informações recebidas, mesmo que escrita e mesmo que por pessoas de “confiança”, corre o risco de ser traído por dentro do Poder.

O ORÇAMENTO PARTICIPATIVO EM MARINGÁ*

*Artigo publicado no livro: “Orçamento Participativo: avanços, limites e desafios”, Elias Brandão (org.). Maringá/PR-Brasil : Massoni, 2003 – pp. 89-100 – (ISBN 85-88905-05-1).
Elias C. Brandão
Historiador, mestre em Educação e doutor em Sociologia, foi diretor/coordenador geral do Orçamento Participativo no Município de Maringá, entre 2001 e 2003.
No programa de governo do Partido dos Trabalhadores (PT), de Maringá, para candidatura de José Cláudio e João Ivo Caleffi, foi discutido e defendido a importância da implementação do Orçamento Participativo (OP). Aqui em Maringá, na época, existia um orçamento, chamado popular e, nosso objetivo foi fazer algo forte, real, verdadeiro e, buscamos então, a experiência de Porto Alegre, adaptando-a à nossa realidade.
Para apresentar o trabalho realizado, farei primeiro, uma introdução à exposição, refletindo o que é Orçamento Público e Orçamento Participativo.
Vejamos. A elaboração do Orçamento Público é uma responsabilidade do Poder Executivo que, anualmente, até o mês de setembro, deve ser enviado à Câmara ou Assembléia Legislativa, para apreciação do Poder Legislativo que, por lei, tem a função e responsabilidade de fiscalizar sua implementação após a aprovação.
Historicamente, o Orçamento Público sempre foi elaborado em gabinetes dos administradores públicos, imaginando, sem consulta popular, o que era melhor para a população. O povo e suas lideranças não eram consultados sobre o que precisavam. Os administradores consideravam e garantiam no Orçamento, em tese, as obras e ações que davam mais voto ou que garantisse uma eleição ou reeleição.
Aproveitando-se da ausência do povo na elaboração da peça orçamentária, os legisladores, visando, em tese, ganhos quantitativos de votos, sempre propuseram emendas parlamentares no orçamento.
Era desta forma antiga de se fazer política que os Poderes Legislativos, que tem a função de legislar e fiscalizar os Poderes Executivos, sempre interferiram nas propostas orçamentárias. As emendas, com o tempo passaram a ser, para o legislador, independente da instância em que se encontra, o carro chefe de suas campanhas eleitorais e mandatos. Os legisladores deixavam de fiscalizar as ações dos poderes executivos para elaborarem emendas e requerimentos, muitas vezes, beneficiando apenas pessoas ou grupos. Esta forma de fazer política, infelizmente ainda não acabou.
O não-cumprimento da verdadeira função do parlamentar – enquanto legislador e fiscalizador – abriu espaço à sonegação fiscal e ao desvio de verbas públicas, sobretudo nos poderes executivos e legislativos.
Por outro lado, esta concepção começou a mudar na última década, do século XX, com as experiências de Orçamentos Participativos, quando alguns administradores públicos – sobretudo na primeira administração de Olívio Dutra, em Porto Alegre – começaram a abrir espaços e incentivarem a participação da sociedade nas discussões das receitas e despesas públicas. Surge assim a democracia participativa direta, o povo participando do poder através do levantamento das necessidades, priorizando-as de acordo com sua importância na vida social, política, econômica e cultural da comunidade.
A participação do povo nas discussões do Orçamento Público, força os legisladores a assumirem suas verdadeiras funções e alguns deles entram em crise de identidade, pois o que faziam antes de o povo participar do processo democrático direto, era pedir e implorar obras, serviços ou cestas básicas aos poderes executivos, esquecendo-se do verdadeiro papel de fiscalizador dos atos do executivo.
Desta forma, o OP, enquanto proposta de participação popular e de constituição da cidadania, apresenta-se como um projeto político de enfrentamento entre população e legislativo, visto que, historicamente parte dos parlamentares sobreviviam do assistencialismo, da poda de árvores, dos pedidos de campo de futebol, dos nomes de ruas, do transporte de doentes, de emendas parlamentares e etc.
Em Maringá, por exemplo, não era práxis o poder executivo realizar com a municipalidade, menos ainda com a participação aberta e direta da população, através de assembléias gerais e conselho próprio, uma discussão das arrecadações e investimentos das receitas públicas. Por outro lado, queremos registrar que, a participação do povo nas ações políticas do poder público depende da abertura política de quem administra e de quem está envolvido politicamente na administração e, é isto que pretendo dividir com vocês: a nossa experiência de Orçamento Participativo de Maringá.
Em nosso caso, para implantá-lo, primeiro dividimos a cidade em 7 regiões e cada região em microrregiões e, nas regiões, organizamos as assembléias gerais da primeira rodada, entre março e maio. Nas assembléias, prestamos contas, serviços e obras da prefeitura (a prestação de conta da Prefeitura de Maringá era realizada pelo Secretário da Fazenda, Enio José Verri ou, na sua ausência, por um de seus diretores: Sérgio Pavan Margarido ou Décio Vicente Galdino Cardin) do ano anterior; são apresentados os critérios do Orçamento Participativo; o povo usa o microfone no momento do fala povo e o prefeito encerra a assembléia.
Terminada a primeira rodada, fazemos as reuniões intermediárias, nos meses de maio e junho, em três etapas: primeiro: reuniões nos bairros para eleição de delegados e levantamento das necessidades; segundo: reuniões nas microrregiões e, terceiro: nas regiões para organizar as demandas populares anteriormente levantadas.
Num segundo momento, em que chamamos de assembléias gerais da segunda rodada, no final de junho e começo de julho, todos(as) delegados(as) reúnem-se e entregam as demandas ao prefeito. Nesse momento temos nova prestação de contas da prefeitura, sobre os primeiros 4 meses de trabalho do ano em curso, apresentada pelo secretário da Fazenda. Em seguida um representante dos delegados e um representante das secretarias de governo entregam, simbolicamente, as demandas regionais e institucionais ao prefeito. Após a entrega, abre-se a palavra ao povo e, em seguida, o prefeito responde as dúvidas, questionamentos, sugestões ou elogios. Após a palavra do prefeito, encerra-se aquela assembléia e inicia-se a assembléia eleitoral, realizando a eleição dos(as) conselheiros(as). Cada assembléia regional elege 2 conselheiros titulares e 2 suplentes.
O governo, no dia da posse do Conselho do Orçamento Participativo (COP), apresenta os 2 conselheiros titulares e os 2 suplentes representantes do governo.
Como são 7 regiões do OP, temos, em Maringá, um Conselho com 32 pessoas, sendo 28 conselheiros populares e 4 do governo.
Diferente do ano de 2001, não participam do COP, em 2002, conselheiros de entidades como do Sindicato dos Servidores Municipais ou mesmo da Federação das Associações de moradores.
Atualmente, quem quiser participar do COP, precisa primeiro: participar da assembléia geral da primeira rodada do OP; segundo: comparecer na reunião do bairro para ser eleito delegado pela comunidade e ajudar no levantamento das necessidades locais; terceiro: não ter cargo de confiança em alguns dos poderes: executivo, legislativo ou judiciário; quarto: participar das reuniões das micros e regiões e, por fim, participar da assembléia geral da segunda rodada.
Lembramos que, durante a rodada intermediária, enquanto a comunidade realizava reuniões para levantamento e hierarquização das necessidades populares, internamente na prefeitura, as secretarias de governo realizavam estudos sobre as demandas institucionais, ou seja, sobre demandas que o governo entende como importantes para serem realizadas junto à comunidade e que são entregues, simbolicamente, ao prefeito, na assembléia geral da segunda rodada, juntamente com as demandas populares. As demandas institucionais são apresentadas e defendidas, pelo(a) secretário(a) da pasta afim, na reunião do COP e os conselheiros, após apreciá-las, poderão acatá-las ou rejeitá-las, hierarquizando-as, se necessário, com as demandas populares.
Quando as demandas populares chegam no COP e ocorrem empates, temos critérios que desempatam. Atualmente os critérios são:
* Primeiro: prioridade da região do OP;
* Segundo: carência da região;
* Terceiro: população da região.
Estes critérios podem sofrer alterações, uma vez que, antes de o próximo COP começar a hierarquizar as temáticas e as demandas, precisam definir os critérios de desempate e a quantidade de temáticas em que o governo deverá investir recursos no próximo ano.
Outro dado importante. Enquanto realizávamos assembléias com os adultos, em 2002, foram realizadas assembléias com as crianças. Mais ou menos mil crianças participaram deste processo, assessoradas pela Secretaria de Esportes e Lazer, com apoio de acadêmicos de educação física. Esta prática despertou cidadania.
Quero ainda registrar, que pegamos a administração de Maringá, no ano passado (2001), numa situação de calamidade total, desde os veículos, até as secretarias. Por isso, no primeiro ano do Orçamento Participativo, estes problemas refletiram nas discussões locais e regionais e a população elegeu saúde, educação e infra-estrutura, como prioridades para os investimentos públicos, do governo popular, em 2002.
A importância do Orçamento Participativo é a conscientização decorrente aos que dele participam. O povo e o governo aprendem. O importante também é que o(a) delegado(a) e o(a) conselheiro(a) se conscientizam da situação financeira da prefeitura e passam a entender a situação do município.
Para finalizar, sugerimos criar, hoje, neste Seminário, um Fórum Paranaense de Participação Popular, que discuta políticas públicas, entre elas o Orçamento Participativo e, quem sabe, possa coordenar um II Seminário Paranaense do OP, em 2003.
Respondendo à pergunta sobre associações de moradores, infelizmente aqui em Maringá, existia um grande atrelamento das associações, com algumas exceções, com o executivo municipal e recebiam muitos favores, como empréstimo ou aluguel da sala à Federação. E, desta forma, a dependência ao Poder Público, não permitia a autonomia. O fim desse tipo de relação é necessário. Queremos instituições livres e autônomas, que façam as críticas quando necessário e apresentem sugestões ao governo. Elas devem existir e somos a favor e até incentivamos. O que não queremos é que fiquem atreladas. Um exemplo: não fornecemos ônibus aos moradores ou às associações, para que as pessoas participem das assembléias do OP. Nós, para facilitarmos a participação do povo, temos organizado e divulgado um número maior de reuniões e assembléias gerais possibilitando a locomoção, pois todos têm direito à participação.
Sobre a questão levantada em relação a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), quero lembrar que os próprios partidos de esquerda, sobretudo o PT, já reivindicava há anos, uma Lei que controlasse os abusos que as administrações públicas faziam na cara dura, na frente de todo mundo, em relação ao controle das despesas públicas. O problema é que ela está vindo muito tarde e os órgãos públicos já foram sucateados. O ponto positivo da Lei é que obriga o administrador a informar e prestar contas à população sobre os gastos públicos, receitas e despesas, ou seja, controla melhor o administrador, impedindo-o de gastar além de seu próprio limite. A LRF deveria estar em prática há mais tempo. Veio tarde demais, quando muitos desfalques já foram praticados contra os cofres públicos. O ponto negativo é que ela impede as administrações públicas sérias de realizarem contratações, quando necessárias, para melhor administrar.