26 novembro, 2006

Orçamento Participativo

A democratização do Poder Executivo do Município de Maringá[1]
Artigo apresentado na XXII SEMANA DO ADMINISTRADOR/UEM –XXII SEMAD – “O administrador na era do conhecimento”.
09 a 13 de setembro de 2002 – (ISSN 1518-5354). Texto semi-revisado para esta publicação.

Elias Canuto Brandão
Historiador, mestre em Educação e doutor em Sociologia

Márcia Regina Ferreira
Administradora, mestre em Administração e professora na Universidade Federal do Paraná-Matinhos


Resumo
Este artigo propõe uma discussão sobre a democratização do poder local através da participação popular. O Orçamento Participativo tem sido motivo de vários estudos nos últimos 40 anos e, no entanto, somente na última década é que se tornou motivo de pesquisas mais especificas que buscam relatar as experiências desta nova forma de gestão pública. Historicamente a política brasileira registra relacionamento com a comunidade de forma autoritária ou a clientelista. O orçamento participativo busca uma nova relação entre o poder público local (executivo e o legislativo) e comunidade, realizando um processo de democratização da ação política, através de plenárias, reuniões, conferências, cursos de capacitação, assembléias, enfim, práticas que serão relatadas e discutidas com base na experiência do Município de Maringá.


Introdução

A consolidação da democracia moderna é, sem sombra de dúvida, um dos grandes acontecimentos do século XX, pois este regime considera a vontade do cidadão. No entanto, vivemos um período onde a promessa da modernidade não foi cumprida, o homem-cidadão como se imaginava não teve sua emancipação, ao contrário, o homem continua tão preso quanto antes da idade da luz. Seus medos hoje são outros: o desemprego, a exclusão o desamparo. O processo de exclusão é radical e se mostra irreversível e esta exclusão é resultado de uma política liberal de desenvolvimento que está predominante no mundo.
Enquanto os Estados praticam esta política liberal, predomina entre as comunidades uma falta de esperança e desespero sobre este poder que parece único. Na Europa há discussões sobre o horror econômico, onde Forrester (1999: 22) questiona a falta de luta, a não ser aquela que reivindica mais espaço para o seu mercado, se não triunfante, pelo menos onipotente, que provavelmente tem sua lógica, mas à qual não se confronta nenhuma outra lógica. E como se todos participassem do mesmo campo, e aceitassem a tudo isso como um estado natural das coisas, como o ponto exato onde a história nos esperaria. Forrester apresenta a crueldade deste cenário dos novos excluídos: “Nenhum apoio subsiste para aqueles que não têm nada, a não ser a perda”.
Este discurso único se embasa radicalmente no consenso econômico liberal, conhecido também como consenso de Washington, que foi elaborado especialmente para América Latina e Caribe. Este consenso exige a aplicação de uma política de diminuição do Estado, ajuste fiscal, fim das restrições do capital estrangeiro, abertura do sistema financeiro, desregulamentações, ou seja, temos de um lado o surgimento da democracia no Brasil, principalmente após a década de 80 e, no entanto, vivemos a partir desta mesma década o crescimento do neoliberalismo por incentivo dos Estados Unidos e Inglaterra.
Assim enfrentamos um grande dilema, que consiste em discutir sobre democracia, participação popular e direito dos cidadãos, em meio ao grande avanço neoliberal. No Brasil nunca existiu o Estado de Bem Estar Social que outros países conheceram devido ao medo do avanço comunista. Na verdade os países da América Latina apenas conheceram governos autoritários e repressores criados pela ditadura do militarismo (décadas de 60,70 e 80) que muitas vezes foram financiados pelos Estados Unidos e Multinacionais.
No entanto, estamos vivendo também em toda parte uma tendência à dissolução dessa ideologia neoliberal. A visão de uma nova realidade mais condizente com a busca do interesse social pode ser encontrada na discussão de Milton Santos, sobre a necessidade de uma outra globalização, que rompa com o pensamento único e crie a consciência universal.
[...] um mundo verdadeiro se definirá a partir da lista completa de possibilidades presentes em certa data e que incluem não só o que já existe sobre a face da Terra, como também o que ainda não existe sobre a face da Terra, mas é empiricamente factível. Tais possibilidades, ainda não realizadas, já estão presentes como tendência ou como promessa de realização. Por isso, situações como a que agora defrontamos parecem definitivas, mas não são verdades eternas. (SANTOS, 2000, p. 160)

Assim, essa realidade do cenário mundial e esta tendência em criar novas alternativas, abrem espaço para a questão social e redefine inteiramente as relações entre estado e sociedade civil.
Na década de 70 começou a avançar o processo de democratização do país, com o surgimento de novos atores sociais e políticos: através da atuação das comunidades eclesiais de base, oposições sindicais, das associações de bairros. Todos articulando e colocando no plano nacional a luta pelo reconhecimento dos direitos sociais, econômicos e políticos dos setores populares.
Caccia Bava apresenta que essa realidade aponta para a emergência de novos atores e novos modelos de desenvolvimento:
[...] A manifestação de atores plurais na sociedade civil, intervindo nos processos de decisão política nacional e local, faz com que o debate tenha de levar em consideração a diversidade e pluralidade das demandas sociais e urbanas. O empobrecimento crescente e o encolhimento do Estado que nos diz respeito à extensão dos serviços públicos, colocam em destaque o tema do poder local e participação popular porque expressa uma dinâmica que traduz as questões centrais do cenário político nacional. (CACCIA-BAVA, 1994, p. 5)

E para desenhar este novo cenário político nacional emerge o discurso da participação popular, pela falta de legitimidade dos governos que se sucederam, insensíveis à pobreza e à miséria da grande maioria da população.

A participação popular e a descentralização

Certamente, a participação popular trouxe para o cenário público novos atores como uma realidade tangível, feita de fatos-vozes, conflitos, imagens, discussões, sentidos-até então inexistentes. As pessoas começaram a se conscientizar da importância de participar da vida pública e se organizar.
Sobre essa participação, Hannah Arendt (2000) comenta que “a ação jamais é possível no isolamento. Estar isolado é estar privado da capacidade de agir. A ação e discurso necessitam tanto da circuvizinhança de outros quanto à fabricação necessita da natureza”.
A década de 80 nos legou um sentido de participação completamente novo e civilizatório:
O marco legal não nos assegura por si só o gozo dos direitos prescritos constitucionalmente, como foram em 1988; é preciso que os atores o exercitem através das conferencias e dos conselhos setoriais, que foram inscritos nas leis orgânicas de muitos municípios. (SILVEIRA, 2000: p. 90)

Para Demo (2001), a participação só será real, se não for imposta, concedida ou doada. Participação para ele é conquista, assim como foram conquistados alguns espaços na Constituição Brasileira, realizada através de pressões de vários grupos de movimentos populares. A sociedade civil precisa se organizar para criar o processo emancipatório para a construção da cidadania, e o primeiro lugar para iniciá-la é em seu bairro, sua cidade, seu estado, enfim partindo do lugar que você vive e convive com as pessoas.
Para Castro (1999), a real participação deve iniciar desde a base, além de uma descentralização do poder, em uma priorização da cultura local, já que sem significação cultural a descentralização é ineficiente. Em definitivo, a cultura local é a que sustenta o poder local. Apesar da importância dessas ações locais como base para as ações do Estado como um todo, os municípios brasileiros, no entanto, só conseguiram ampliar consideravelmente a sua importância no sistema federativo; assim como também a sua autonomia, com a constituição de 1988, conhecida também como a Constituição cidadã e, como aponta Jovchelovitch apud Castro (1999), “é uma constituição eminentemente municipalista, descentralizadora, concebida para transferir responsabilidades. Pela primeira vez no Brasil, o município é reconhecido como ente de federação”.
Para Martins (1998, p.41) descentralizar a administração pública significa, no atual contexto, transferir recursos e delegar autoridade a governos subnacionais (Estado e Município), que antes faziam parte da competência do governo federal.
Segundo Bertaso (1999, p.10), os direitos fundamentais do cidadão são os sociais e igualitários, que visam organizar a sociedade de forma justa. E nessa perspectiva, a cidadania não representa avanço à maioria da população brasileira, porque somente algumas classes a exercem plenamente: não como conquista ensejada no corpo social, mas como um privilégio disputado pela “competência” de um restrito corpo. Pois, no Brasil, a democracia representativa nunca conseguiu fazer do espaço-público algo público, a privatização da coisa pública sempre foi uma presença marcante em nossa sociedade.
Desta forma, Pinho e Santana (2000, p.4) verificam que existe uma identificação do nível municipal como o detentor do “maior papel no combate à pobreza e à exclusão social” e este tem sido citado também por organismos internacionais.
Porém, isto neste momento não é bom, pois esta auto desresponsabilização dos Estados Nacionais não tem sido acompanhada da necessária transferência de recursos dos níveis nacional e estadual para os municípios, para que estes possam atender suas novas atribuições, o que só faz aumentar a grandiosidade das tarefas dos municípios.
Vale lembrar que no Brasil não houve efetivamente a reforma tributária. O Estado continuou centralizado, como no tempo em que o Brasil era predominantemente constituído por populações rurais dispersas. Dawbor (1999) em suas reflexões questiona como enfrentar os milhões de problemas de pequenos e grandes dramas que surgem em cada cidade, exigindo intervenções flexíveis, rápidas, com uma gestão centralizada tanto de gestão como de recursos? Assim, surge uma situação curiosa, pois as prefeituras estão na linha de frente dos problemas, e no último lugar na cadeia de decisão.
Para tanto, nota-se que os municípios estão pressionados, e precisam inovar e assumir suas novas atribuições no governo local promovendo a participação cidadã através do reconhecimento da sociedade civil organizada como novo ator social, o que leva à institucionalização de mecanismos de democracia direta, tais como Orçamento Participativo (OP), conselhos municipais, fóruns de consulta.
É no Município que se tem visivelmente o problema da escola, saúde, emprego, moradia, é o local em que a relação entre governantes e governados se apresenta de forma mais clara.
No município, pela aproximidade, permite vários tipos de relações entre governantes e governados, mas podem também, como na história do Brasil, reproduzir um padrão de dominação tradicional, permitindo ainda a presença do coronelismo, populismo, clientelismo e o poder Burocrático. (ROBERTINA, 2001, p. 2)

As iniciativas de práticas como o Orçamento Participativo provocam o abandono da visão tradicional assistencialista substituída por políticas mais consistentes de combate à exclusão social e à pobreza, gerando, sobretudo a participação da sociedade e sua confiança no governo local quanto às decisões que envolvem o econômico, o social e o humano.
Assim, parece que não cabem dúvidas quanto ser a participação uma maneira democrática e necessária da sociedade organizar-se politicamente, potencializando o exercício dos direitos da cidadania, buscando sempre a solução negociada dos conflitos, através de espaços públicos, onde o direito de participação é assegurado a todos.

Nova forma de co-gestão e controle social: orçamento participativo

O Orçamento Participativo tem se mostrado cada vez mais crescente em todo país. A população pode interferir na definição de prioridades e no aproveitamento de recursos públicos através de organizações sociais ou individualmente. No ano 2000, mais de 140 prefeituras de todo Brasil trabalharam com o Orçamento Participativo.
Segundo Nunes (1999, p. 130), as experiências do Orçamento Participativo iniciaram na década de 1970 com prefeitos da esquerda de cidades européias, como Bolonha, na Itália, Delf, na Holanda, ou Chambéry, na França, que inovavam convidando os habitantes a participar das decisões urbanas. O Brasil vivia neste período uma ditadura, mas mesmo assim algumas experiências aconteceram, como em Ipiaú/Bahia nos anos 60, Piracicaba/SP na década de 1970 e Lages/SC na década de 1980, conforme cita Alves (1980, p. 19) “conversando com sua gente, esmiuçando os múltiplos projetos que a administração põe em prática, fazendo, com muitos acertos e erros, uma experiência-piloto de democracia participativa e economia ecológica”. Assim surgiu pela primeira vez no Brasil um relato sobre a força do povo, onde o povo “tomou a palavra”.
Dessas experiências, destaca-se para Carvalho & Felgueiras (2000, p. 7) o OP de Porto Alegre-RS (3 gestões) como metodologia de gestão pública de maior repercussão e sucesso, com destaque nacional e internacional, citado no Jornal Le Monde Diplomatique, em agosto de 1998, como a experiência de democracia direta municipal única no mundo (Nunes, 1999).
Esse reconhecimento internacional, segundo Fedozzi (2000), ocorre quando a experiência de Porto Alegre foi selecionada pelas Nações Unidas como uma das quarenta melhores intervenções urbanas merecedoras de apresentação, em 1995, na segunda Conferência Mundial sobre Habitação Humana (Habitat II), realizada em Istambul.
O orçamento em todo mundo é encarado, como algo puramente técnico, um instrumento de gestão econômica, politicamente neutro, quando na verdade, para Souza (2001, p. 4) ele possui um imenso conteúdo político, porque se trata de decidir sobre fins, e não apenas sobre a otimização dos meios, isto é, trata-se de gerir os recursos públicos que serão investidos (ou não) para satisfazer as necessidades da população.
No entanto, a participação da sociedade na gestão pública e o próprio exercício da cidadania vêm sendo invocados, dentro do ideário neoliberal, não como radicalização da democracia e controle social, garantindo as responsabilidades públicas do Estado, mas, como substituição deste seu papel público. Estes mesmos conceitos de cidadania, de participação e parceria entre Estado e sociedade vêm sendo reapresentados com o significado de delegação à sociedade das responsabilidades públicas do Estado (tido como inchado e inoperante), responsabilidades de correção das distorções sociais provocadas pelo mercado e de provimento dos serviços públicos universais. (CARVALHO & FELGUEIRAS, 2000, p . 7)

Estas reflexões se fazem necessárias a respeito desta nova forma de co-gestão e controle social, pois existe uma tendência natural e esperada da política social pública de ser instrumentação do controle social e da desmobilização. Segundo Demo (2001, p. 84) a participação será interessante enquanto legitimar a ordem vigente. Do ponto de vista dos donos do poder, interessa a participação quando consentida e tutelada.
Desta forma, Buarque (1999) argumenta que embora o OP seja o maior avanço de todos na democratização, há nele um problema estrutural, pois apesar de ele romper com o corporativismo dos grupos sindicais, ele mantém um corporativismo da rua, o corporativismo do bairro.É necessário trabalhar nos delegados do orçamento níveis de consciência em relação à realidade das causas dos problemas.
O Orçamento participativo permite trazer a participação, mas não traz a consciência social plena. A cidadania ainda é limitada, porque é administrativa, não é política, e é ainda menos uma cidadania ideológica, pois não vê do que a cidade ou o país necessita a longo prazo. (BUARQUE, 1999, p . 10)

Para que a construção democrática seja de fato uma realidade, uma nova consciência, e que a participação popular seja reconhecida como verdadeira, uma avaliação cuidadosa deve ser sempre realizada para verificar se o Orçamento Participativo contribui de fato como instrumento democrático de gestão municipal, a qual envolva os cidadãos com um modelo de co-gestão, ou como nas palavras de Souza Santos (2001, p. 526):“um modelo de partilha do poder político mediante uma rede de instituições democráticas orientadas para obter decisões por deliberações, por consenso e por compromisso.”
Há cada vez menos pessoas estão dispostas a aceitar as barbaridades que se praticam em nome da liberdade da grande empresa e dos interesses do Estado, ou a acreditar no espantalho comunista que é agitado cada vez que se propõe uma forma de desenvolvimento mais humano. A atenção está se voltando para a busca de instrumentos concretos de controle social, diversificado e flexível, sobre o desenvolvimento caótico que temos vivido. (DOWBOR, 1987, p. 108)

O Orçamento Participativo mostra-se como uma oportunidade ímpar para transportar as contradições de uma sociedade injusta, dando uma garantia de maior proximidade entre as reais necessidades dos habitantes e a ação dos governos da cidade. Espera-se também, que o OP seja capaz de construir uma inversão de prioridades.
A idéia que a esquerda pretende tornar hegemônica através desta proposta de intervenção da sociedade civil, é a de um Estado cujas decisões favoreçam a maioria, de um estado distributivista, em detrimento de um Estado claramente comprometido com os interesses imediatos de empresários, especuladores imobiliários, oligarquias, etc. Por isso, o Orçamento participativo é definido como ferramenta da “desprivatização do público”. (PIRES, 2001, p. 64)

O Orçamento Participativo já é uma realidade e uma alternativa para o controle social e a democratização do poder local, entretanto, ainda minoritário e heterogêneo, cada cidade tem suas características na aplicação do OP, por isso, penetrar, mais a fundo na compreensão desse promissor tipo de experiência em gestão urbana e democratização do poder local, exige o enfrentamento de diversas questões ainda não contempladas ou insuficientemente contempladas.

O Orçamento Participativo em Maringá-PR

Orçamento Participativo do município de Maringá/PR foi uma das propostas de campanha do PT, no ano de 2000, para o Executivo Municipal. Sua implementação se fundamentou no conhecimento das experiências do OP das prefeituras de Blumenau-SC e Porto Alegre-RS. O orçamento participativo nestas cidades é visto como instrumento de cidadania, pois é o principal instrumento na construção de uma relação com a comunidade, podendo revelar muitas peculiaridades da prática administrativa na gestão local e apresentar a democratização deste poder e suas alternativas.
Inicialmente, o município de Maringá foi dividido em 6 regiões e cada região em microrregiões, agrupadas de acordo com a carência, realidade geográfica, sócio-econômica e cultural. Os bairros levantaram e priorizaram as necessidades e elegeram os delegados.
O lançamento oficial do OP em Maringá ocorreu no dia 28 de março de 2001, no Cine Teatro Plaza e, no dia 25 de abril, foi realizada a primeira Assembléia Geral da Primeira Rodada.
No total, em 2001, foram realizadas 15 (quinze) Assembléias Gerais e 6 (seis) Assembléias da Segunda Rodada, todas com a presença do Prefeito José Cláudio e do Vice-Prefeito e Coordenador Geral do OP, João Ivo Caleffi, e se inscreveram 4.721 pessoas. Do total das reuniões e assembléias, participaram mais ou menos 10 mil pessoas.
Do total, foram eleitos 438 delegados nas reuniões do Orçamento Participativo em 2001. Ao mesmo tempo em que o povo fazia reuniões nos bairros, internamente, na prefeitura, as secretarias de governo levantavam as necessidades institucionais para apresentar nas reuniões do Conselho do Orçamento Participativo (COP).
Em 2001, o Governo Popular de Maringá, trabalhou com uma previsão orçamentária de 5 (cinco) milhões de reais e, após dezenas de reuniões, o Conselho do Orçamento Participativo (COP), eleito nas Assembléias Gerais da Segunda Rodada, hierarquizaram as demandas para fazer parte do Orçamento Público, que foi enviado à Câmara de Vereadores e aprovado na íntegra. O COP hierarquizou demandas para três prioridades temáticas:
• Saúde, 50% do orçamento, o equivalente a R$ 2,5 (dois milhões e meio de reais);
• Educação, 30%, o equivalente a R$ 1,5 (um milhão e meio de reais);
• Infra-estrutura, 20%, o equivalente a R$ 1,0 (um milhão de reais).

Como funcionou o Orçamento Participativo

A população foi chamada para co-administrar a cidade com o Governo Popular, através de um processo democrático e consultivo que se realizou em vários momentos, como Assembléias Gerais, Assembléias Intermediárias Autônomas locais e microrregionais, Fórum de Delegados e Conselho do Orçamento Participativo. Momentos como estes estavam previstos na Lei Orgânica do Município de Maringá, nº 30/99, artigo 105, parágrafo único: “Será garantida a participação da comunidade nas etapas de elaboração, definição e acompanhamento da execução plurianual, de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual”.
As demandas e prioridades foram hierarquizadas pelo COP obedecendo à hierarquia da demanda na Região, carência de infra-estrutura e população a ser atendida.
Todas as demandas hierarquizadas pelo COP, em 2001, foram planejadas para serem executadas em 2002. Antes de serem hierarquizadas, as demandas foram enviadas às secretarias afins para pareceres legal, técnico e financeiro. No Conselho, todos os pareceres foram apreciados.

As assembléias

As Assembléias da Primeira Rodada tiveram como objetivo determinar a quantidade de delegados que seriam eleitos nas reuniões de bairros. Para cada dez pessoas de uma mesma localidade, bairro ou jardim, com mais de dezesseis anos de idade, presentes na Assembléia, tinha o direito de eleger um, ou ser eleito delegado na reunião ou assembléia local. Os delegados eleitos de uma mesma Região elegiam dois conselheiros titulares e dois suplentes na Assembléia Geral da Segunda Rodada.

A participação e a formação

O povo participou das assembléias e reuniões, elegeram os delegados e conselheiros. No segundo semestre, muitos delegados e conselheiros participaram de formação sóciopolítica. Foram realizadas aproximadamente cinqüenta reuniões de estudos em nível de micros e de regiões, sobre funcionamento da sociedade, análise de conjuntura, ética e cidadania.
São importantes as reuniões de formação e capacitação para o despertar da consciência critica de todos os envolvidos na gestão municipal. O governo local é defensor da idéia de que só pela participação efetiva, conhecendo o todo, através de estudos e discussões é possível se praticar a democracia, instigando os cidadãos a serem mais exigentes e mais críticos.
A participação pode ser medida em quatro momentos: Assembléias Gerais da Primeira Rodada, Reuniões e assembléias nos bairros, Fóruns de serviços para discutir com representantes do governo os serviços emergenciais e, Reuniões e encontros de formação social e política. A partir deste momento, a participação do povo no governo tem sido indireta.

A participação cidadã

Acredita-se que o Orçamento Participativo é uma forma dos cidadãos exercerem direitos garantidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigos 1, 21, 27 e 29, na Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, art. 1º, parágrafo único, no art. 5º e Emenda à Lei Orgânica do Município, já comentado a pouco.
A participação popular no Orçamento Participativo é uma das formas de envolvimento direto no governo, através do Conselho do Orçamento Participativo e indiretamente na Câmara de Vereadores, acompanhando as votações na Plenária. Em Maringá, a participação popular começou durante as discussões para elaboração do Plano de Governo e, posteriormente, foi para as ruas, reuniões, mídia e debates políticos durante a campanha eleitoral de 2000.
Observa-se que o povo, independente de partido, quando percebe a seriedade de um projeto, participa e se dispõe a ajudar e a compreender como funciona a administração pública, como vem às verbas, como são gastas e qual o melhor planejamento das ações para que possa beneficiar o maior número possível de pessoas.O povo, na realidade, busca um compreender a democracia.
Individuo e Sociedade existem mutuamente. A democracia favorece a relação rica e complexa indivíduo/sociedade, em que os indivíduos e a sociedade podem ajudar-se, desenvolver-se, regular-se e controlar-se mutuamente.[...] Democracia é mais que um regime político; é a regeneração contínua de uma cadeia complexa e retroativa: os cidadãos produzem a democracia que produz cidadãos.(MORIN, 2001, p. 107)

Desta forma, os conselheiros nas reuniões discutiram e debateram a respeito das prioridades, e pelas regras democráticas do consenso da maioria, decidiram por investimentos na cidade que priorizasse as primeiras necessidades apontadas pelos munícipes: saúde, educação e infraestrutura. Fez também com que os participantes adquirissem consciência da importância da participação e de intervenção político-social. Não era práxis na política de Maringá, a dialética cidadão-governo-cidadão e isto facilitou o envolvimento e a credibilidade da população no governo popular.
Assim, o compromisso com a população foi mantido e o OP, como cita Sánchez (2002, p. 43), “se tornou um espaço de deliberação efetiva, com regras preestabelecidas que não se alteram ao sabor dos interesses, nem da população e nem do governo, promovendo a idéia da co-gestão das políticas públicas”.
Por outro lado, não isentou o governo de ser cobrado de serviços essenciais junto à comunidade. O prefeito e o secretariado são vistos e cobrados como salvadores sociais e político, de um município dilapidado.
Em Maringá, o Orçamento Participativo tem contribuído com o crescimento pessoal e político dos munícipes, possibilitando encontros de delegados e conselheiros na discussão das demandas e na decisão dos investimentos.
Nas reuniões regionais do OP, as pessoas criticam, mas também sugestionam e apontam possíveis soluções. Exigem e apresentam propostas. É como escreveu Tarso Genro (2001, p. 16), ”Ao democratizar as decisões e, ao mesmo tempo, democratizar a informação sobre as questões públicas, o Orçamento Participativo é capaz de gerar uma nova consciência cidadã”.

Considerações finais

No final de 2001 realizou-se uma pesquisa junto a delegados e conselheiros, para analisar o desempenho do Orçamento Participativo, para 20,62% dos que responderam o questionário, o Orçamento Participativo é ótimo e para 55,50%, o OP é bom. A mesma avaliação foi realizada internamente na Prefeitura e houve semelhança nas respostas. Dos entrevistados, 20,45% responderam que o Orçamento Participativo é ótimo e 56,59% responderam que o OP é bom.
A pesquisa indica que a prática do Orçamento Participativo em Maringá, foi aceito e aprovado pela comunidade e, todos que dele participam, aprendem, ensinam e avançam social e politicamente. Esses fatos acenam para um processo de democratização do poder local, fazendo a comunidade assumir cada vez mais o seu papel de protagonista, ou seja, de cidadão.


Bibliografias

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25 novembro, 2006

GESTÃO PÚBLICA E PARTICIPAÇÃO POPULAR

Responsabilidades políticas do Legislativo e do Executivo*

*Palestra aos vereadores e secretários do Município de Jandaia do Sul/PR-Brasil
Câmara Municipal, em 14 de fevereiro de 2005
Elias C. Brandão
Historiador, mestre em Educação e doutor em Sociologia
canutobrandao@hotmail.com

A convite desta casa de leis de Jandaia do Sul/PR, é com satisfação que faremos uma reflexão direta sobre as funções dos integrantes do Legislativo e do Executivo. Há confusões a este respeito em todo o Brasil e muitos eleitos, apesar de saberem de suas responsabilidades, acomodam-se na execução de suas funções, confundindo a sociedade e criando problemas políticos de ordem administrativa, prejudicando diretamente os cidadãos por descumprirem suas funções de fiscalizadores, legisladores e ou executores para as quais foram eleitos.

O que diz a Constituição sobre o Poder Legislativo e Executivo?

Art. 30. Compete aos Municípios: (Ver Jurisprudência sobre alguns dos incisos).
I - legislar sobre assuntos de interesse local;
II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;
IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a legislação estadual;
V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial;
VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação pré-escolar e de ensino fundamental;
VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;
VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;
IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei. (Ver Jurisprudência sobre alguns dos parágrafos).
§ 1º. O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas, dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver.
§ 2º. O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.
§ 3º. As contas dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei.
§ 4º. É vedada a criação de Tribunais, Conselhos ou Órgãos de Contas Municipais.

O que diz a Lei Complementar nº 101/2000 – LRF?

Art. 1o Esta Lei Complementar estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, com amparo no Capítulo II do Título VI da Constituição.
§ 1o A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.
§ 2o As disposições desta Lei Complementar obrigam a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
§ 3o Nas referências:
I - à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, estão compreendidos:
a) o Poder Executivo, o Poder Legislativo, neste abrangidos os Tribunais de Contas, o Poder Judiciário e o Ministério Público;
b) as respectivas administrações diretas, fundos, autarquias, fundações e empresas estatais dependentes;

Art. 59. O Poder Legislativo, diretamente ou com o auxílio dos Tribunais de Contas, e o sistema de controle interno de cada Poder e do Ministério Público, fiscalizarão o cumprimento das normas desta Lei Complementar, com ênfase no que se refere a:
I - atingimento das metas estabelecidas na lei de diretrizes orçamentárias;
II - limites e condições para realização de operações de crédito e inscrição em Restos a Pagar;
III - medidas adotadas para o retorno da despesa total com pessoal ao respectivo limite, nos termos dos arts. 22 e 23;
IV - providências tomadas, conforme o disposto no art. 31, para recondução dos montantes das dívidas consolidada e mobiliária aos respectivos limites;
V - destinação de recursos obtidos com a alienação de ativos, tendo em vista as restrições constitucionais e as desta Lei Complementar;
VI - cumprimento do limite de gastos totais dos legislativos municipais, quando houver.

Funções e responsabilidades de um Vereador – (fiscalizar e legislar)

Partindo do princípio de que os legisladores, sobretudo os vereadores, tem dificuldades em compreender suas funções políticas e constitucionais é que dispomos de orientações sobre suas responsabilidades políticas e sociais, antes mesmo que caiam na malha fina das investigações jurídicas (Ministério Público e Poder Judiciário) e sejam penalizados por conivência, colaboração, ingerência, peculato, falta de competência, desconhecimento, entre outras formas de ausência sobre suas funções legais de legislar e fiscalizar os bens, o erário e o respeito às leis no âmbito Municipal, Estadual e Federal.

Fiscalizar e articular políticas:
  • Apresentar e investigar denúncias contra os vereadores e os funcionários da Câmara; contra o prefeito, secretários municipais e outros servidores municipais, quando o poder executivo omitir-se da responsabilidade;
  • Fiscalizar o Orçamento anual, plano plurianual e lei de diretrizes orçamentárias;
  • Articular politicamente as mobilizações populares e apoiá-las;
  • Criar Comissões Parlamentares de Inquérito;
  • Dar condições aos eleitores – sem jamais substituí-los – de participarem dos contatos e reuniões sociais e políticas junto aos deputados estaduais, federais e senadores, assim como junto a outras autoridades políticas e sociais;
  • Fiscalizar, na forma da Lei o Orçamento Municipal, os tributos municipais, o Plano Diretor e a organização dos serviços públicos municipais;
  • Encaminhar denúncias de irregularidades ao Ministério Público, ao Tribunal de Contas;
  • Estar onde o povo está: audiências, reuniões e assembléias públicas;
  • Exercer funções legislativas, políticas e partidárias;
  • Fazer pronunciamento na tribuna da Câmara;
  • Fiscalizar a alienação, cessão, arrendamento ou doação de bens;
  • Fiscalizar a aplicação dos recursos oriundos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), FUNDEF, FUNDEB, entre outros projetos e convênios;
  • Fiscalizar a dívida pública;
  • Fiscalizar a política administrativa do executivo e legislativo;
  • Fiscalizar a proteção do patrimônio histórico-cultural do município;
  • Fiscalizar as operações de crédito;
  • Fiscalizar as receitas e despesas públicas;
  • Fiscalizar e punir a distribuição de dinheiro público entre servidores, como exemplo a divisão de FUNDEF;
  • Fiscalizar o ordenamento, parcelamento e ocupação do solo urbano;
  • Fiscalizar o regime jurídico dos servidores municipais;
  • Fiscalizar os planos e programas de desenvolvimento sustentável do município;
  • Fiscalizar os poderes Executivo e Legislativo municipal;
  • Julgar as contas do Prefeito e do Presidente da Câmara de Vereadores;
  • Incentivar a população a se organizar e prestar assessoria política e jurídica (não assistencialismo);
  • Organizar estudos e atividades;
  • Orientar a população politicamente, informando as diferenças entre as funções do legislativo e do executivo;
  • Participar de comissões;
  • Propor audiências públicas;
  • Representar a comunidade municipal e não somente a região política que o elegeu;
  • Requerer informações aos poderes: Executivos e Legislativo;
  • Solicitar Comissão Especial de Inquérito (CEI).

Legislar:
· Apresentar emendas[1] à Lei Orgânica do Município;
· Apresentar leis complementares[2];
· Apresentar leis ordinárias[3] e outras proposições;
· Apresentar resoluções[4] e decretos legislativos[5];
· Aprovar o Orçamento anual, plano plurianual e lei de diretrizes orçamentárias;
· Discutir e votar todas as matérias de interesse municipal;
· Discutir, alterar e aprovar em forma de Lei o Orçamento Municipal, os tributos municipais, o Plano Diretor e a organização dos serviços públicos municipais;
· Elaborar pareceres nas comissões permanentes e CPIs;
· Legislar sobre a aplicação das rendas municipais;
· Legislar sobre a concessão de isenções e outros benefícios fiscais;
· Legislar sobre Tributos municipais de sua competência: impostos, taxas e contribuições de melhorias.

Propor e votar leis criando conselhos municipais de:
* Agricultura;
* Criança e Adolescente;
* Cultura e Lazer;
* Desenvolvimento Econômico;
* Direitos Humanos;
* Educação;
* Idoso
* Indústria e Comércio;
* Meio ambiente;
* Saúde...;

Utilizar-se dos instrumentos de trabalho:
Ø Moções[6];
Ø Indicações[7];
Ø Requerimento de informações[8];
Ø Projeto de Lei[9];
Ø Projeto de decreto legislativo[10].

Não é função e responsabilidade dos vereadores(as):
· Construir ou dizer que construirá;
· Diminuir ou dizer que diminuirá os impostos;
· Fazer assistencialismo e distribuir favores;
· Fazer ou dizer que fará desconto de tributos;
· Fazer ou dizer que fará limpeza pública;
· Mandar ou dizer que mandará podar árvore;
· Melhorar ou dizer que melhorará a saúde;
· Mudar ou dizer que mudará secretários ou agentes do executivo;
· Prometer fazer o que é de competência do executivo;
· Ter ambulância e fazer transporte de doentes;
· Reformar ou dizer que reformará ou ampliará uma obra pública...

Funções e responsabilidades de um Prefeito:
Diante das dificuldades e confusões dos gestores públicos (prefeitos, secretários, diretores, gerentes e coordenadores) em compreenderem suas funções e responsabilidades sociais e políticas, resultando em erros jurídicos e inconstitucionais é que tomamos a liberdade de organizar informações para contribuir na formação e orientação de suas funções e responsabilidades políticas e sociais, antes de serem penalizados pelas investigações do Poder Legislativo, Ministério Público e Poder Judiciário, por conivência, má administração, ingerência, desvio de verbas, peculato, entre outras.

Fazer acontecer, executar:
· Administrar bem os bens públicos (receitas e despesas);
· Apresentar à Câmara para aprovação o orçamento com definição de receitas e despesas em cada área;
· Apresentar para a análise e aprovação do legislativo municipal o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e o Orçamento Anual (LOA);
· Apresentar projetos de lei sobre a criação de cargos, funções ou empregos na prefeitura, assim como de aumento da remuneração;
· Assinar contratos e convênios;
· Chefiar o poder executivo, ou seja, o governo local;
· Comandar os serviços públicos;
· Conhecer as necessidades do povo;
· Criar, estruturar e coordenar as atribuições das secretarias e órgãos da administração municipal;
· Definir e executar o plano de governo para os quatro anos de mandato;
· Definir políticas públicas;
· Elaborar o Orçamento Anual com a participação da sociedade;
· Evitar que a equipe de governo trabalhe desarticuladamente para não transformar cada secretaria ou diretoria em feudo, monopólio político ou grupos articulados de tendências partidário;
· Exercer a coordenação política/direção superior da administração municipal, mantendo o controle político, social e ideológico;
· Fazer um governo preferencialmente popular, para e com o povo, sem excluir qualquer cidadão;
· Garantir a participação do povo nas decisões através de conselhos municipais;
· Gastar somente o que se arrecada;
· Governar com uma equipe eminentemente capaz e preferencialmente pequena;
· Não deixar dívidas para o ano seguinte;
· Nomear, por decretos, secretários e demais ocupantes de funções comissionadas;
· Prestar contas à Câmara de Vereadores e ao Tribunal de Contas do Estado;
· Prestar contas ao povo sobre as receitas e despesas públicas em assembléias como as do orçamento participativo;
· Promover e participar de assembléias públicas de prestação de contas sobre o que fez;
· Promover o resgate da cidadania de todos;
· Realizar e participar de audiências públicas;
· Realizar e participar de reuniões de associações de moradores;
· Respeitar a Constituição e a Lei de Responsabilidade Fiscal;
· Sancionar, promulgar e fazer publicar as leis municipais;

· Vetar, total ou parcialmente, os projetos de lei

· Ser responsável pelo funcionamento, manutenção e atendimento de:
1. Centros de saúde;
2. Construção de escolas;
3. Esgotamento sanitário e limpeza pública;
4. Poda de árvores;
5. Praças e calçamento de ruas;
6. Recolhimento do lixo e iluminação pública...

Crimes de responsabilidade de um prefeito:
· Apropriar-se de bens ou rendas públicas;
· Desviar bens e rendas públicas em proveito próprio ou alheio;
· Desviar ou aplicar indevidamente as receitas públicas;
· Utilizar-se indevidamente, em proveito próprio ou alheio, de bens, receitas ou serviços públicos...

O que vereadores(as) e prefeitos(as) não podem fazer (Lei 9.840/99) e Constituição Federal
1. Comprar ou financiar materiais esportivos;
2. Comprar votos;
3. Distribuir ou prometer dinheiro, ferramentas e lotes;
4. Distribuir ou prometer materiais de construção e tíquetes de leite;
5. Doar ou prometer insumos agrícolas, roupas e sapatos ou som para festas;
6. Financiar ou prometer som para festas em geral;
7. Pagamento de contas atrasadas;
8. Pagamento de fianças de presos;
9. Passagens e transportes, viagens e passeios;
10. Prometer emprego;
11. Prometer ou distribuir dentaduras, óculos, muletas ou cadeiras de rodas;
12. Prometer ou doar ajuda para obter documentos;
13. Prometer ou doar bancos ou torres de igreja;
14. Prometer ou doar bolsas de estudos;
15. Prometer ou doar cadeiras de rodas;
16. Prometer ou doar caixões de defunto;
17. Prometer ou doar cestas básicas;
18. Prometer ou pagar atendimento hospitalar, ligaduras, cirurgias, laqueaduras, remédios, consultas médicas ou exames de laboratórios;
19. Prometer ou realizar remoções gratuitas em ambulâncias;
20. Propor a troca do voto por algum bem ou vantagem política;
21. Transportar ou prometer transporte de enterros.

Referências bibliográficas

Constituição da República Federativa do Brasil.
HOUAISS, Antônio (1979). Pequeno dicionário enciclopédico Koogan Larrousse. Rio de Janeiro : Editora Larousse do Brasil.
http://www.dji.com.br/constitucional/lei_ordinaria.htm
Lei Complementar nº 101/2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal.
Ministério Público do Estado do Espírito Santo – Centro de Apoio Operacional Cível e da Defesa da cidadania – Centro de Apoio Operacional Eleitoral –
http://www.mpes.gov.br/files/arquivos/Cartilha%20do%20Eleitor%20Vers%C3%A3o%20II.pdf


[1] EMENDAS: Alterar ou corrigir um artigo, uma parte ou toda a Lei Orgânica do Município, ou seja, é uma modificação introduzida num projeto submetido à discussão de uma assembléia ou parlamento, resultando na recuperação, remendo ou conserto da Lei já existente.
[2] LEIS COMPLEMENTARES: Lei que serve como complemento à Lei já existente.
[3] LEIS ORDINÁRIAS: É assim denominada no processo legislativo (arts. 59, III, e 61, caput, da CF), distinguindo-as da lei complementar ou delegada, já que, a partir de votada e transformada em lei é, na prática, simplesmente denominada lei. É ordinária por ser votada mediante processo ordinário.
[4] RESOLUÇÕES: Moção apresentada (adotada) para resolver algum impasse legal ou político.
[5] DECRETOS LEGISLATIVOS: Decisão emanada do Poder Legislativo. É diferente de um Decreto-Lei: este tem a força de Lei, sendo bastante utilizada pelos poderes Executivos, quando acumulam funções do Poder Legislativo.
[6] MOÇÕES: Documento sugerindo a manifestação da Câmara sobre determinado assunto. O documento pode ser pedindo providências, prestando solidariedade ou apresentando repúdio.
[7] INDICAÇÕES: Petição em que o vereador sugere ao executivo medidas de interesse público. Por exemplo, sugere ao executivo asfaltar uma rua, construir uma creche, realizar serviços de limpeza e podas de árvores...
[8] REQUERIMENTO DE INFORMAÇÕES: São solicitações de informações ao executivo, como gastos sobre determinadas ações, obras ou serviços, receitas e despesas ou número de servidores.
[9] PROJETO DE LEI: Proposta apresentada e submetida à análise, discussão, voto, sanção dos edis e aprovada pelo executivo, podendo se transformada em lei.
[10] PROJETO DE DECRETO LEGISLATIVO: Projeto que pode ser publicado sem a sanção do prefeito. Exemplo: concessão de título de cidadão público; cidadão benemérito, entre outros.

OBSERVAÇÕES: Moções, indicações, requerimento ou projeto de Lei ou de Decreto são apenas iniciativas políticas que podem não resultar em nada. Os erros gravíssimos dos vereadores e deputados são se apegarem a estes subterfúgios (moções, indicações, petições, requerimentos ou propostas de projetos) para se vangloriarem e se auto-elogiarem dizendo que fez ou autorizou executar ações que não lhes pertencem e ou são de sua competência política.

DIREITOS HUMANOS: Da vítima ou do bandido?

Em discussão as leis de proteção dos Direitos Humanos e dois Autos Judiciais de apuração de violência contra idosos e portadores de deficiência*
*Estudo apresentado no I Congresso Internacional de Educação e Desenvolvimento Humano (I CIEDH).
11 a 13 de agosto de 2004 - Universidade Estadual de Maringá/PR-Brasil.
Anais do I CIEDH, ISBN 85-98543-01-2
Elias C. Brandão
Historiador, mestre em Educação e doutor em Sociologia

Os Direitos Humanos? História e constituição

Delinearemos no presente estudo o que são direitos humanos e apreciaremos dois autos de denúncias de violações de direitos dos idosos e portadores de deficiência em asilos, findados na justiça. Para início do estudo, alertamos que os direitos humanos não são estáticos. Apesar de ser uma discussão contemporânea, baseia-se em um olhar histórico e evolutivo não linear, que avança com a socialização e organização das diferentes sociedades.
Partindo das sociedades pré-históricas, observamos que elas se organizavam de maneira diversa das sociedades atuais e não conheceram o controle do Estado. Não existia no interior das sociedades antigas a autoridade da hierarquia, a relação de poder e a dominação dos homens. O chefe dos povos ou tribos não tinha poder de coerção sobre a comunidade. Sua função estava diretamente relacionada aos conflitos que viessem a surgir entre os indivíduos.
Quando ocorriam conflitos, o chefe procurava manter a ordem e a concórdia entre as pessoas que compunham a tribo, respeitando-as e sendo respeitado. O poder não estava na força ou autoridade e sim no prestígio. Sua tarefa de pacificador limitava-se ao uso da palavra a partir de sua eloqüência e da capacidade de persuasão.
No entanto, na Idade dos Metais começa o que hoje conhecemos como período histórico: a formação do Estado; a organização social e política e a exploração dos cidadãos.
A Idade dos Metais começou por volta de 5000 a.C. e coincidiu praticamente com o início da civilização.
[...] Nesse período, ocorreu a revolução urbana, que se caracterizou pela transformação das aldeias neolíticas em cidades, cuja vida se baseava na indústria e no comércio. Invenções importantes dessa época foram o arado de tração animal, o carro de rodas e o barco a vela. Por volta de 4000 a.C., surgiu a escrita, que assinalou a passagem da Pré-História para a História propriamente dita. Essa transição foi quase simultânea com o desenvolvimento da agricultura de regadio, com o surgimento da escravidão e com a formação do Estado (MELLO; COSTA, 1993, p.19-20).
Com a evolução das sociedades, encontramos, aproximadamente em 1700 a.C., a primeira noção de direitos humanos, no Código de Hamurabi (a mais antiga coleção de leis conhecida – Hamurabi era rei da Babilônia). No Código, os escritores mencionam leis de proteção aos fracos, significando que, naquela época, havia violações dos direitos dos cidadãos.
Na mesma época, no Egito, constata-se no livro do Gêneses (Bíblia) que José, filho de Jacó e membro do povo hebreu foi tentado pela mulher do ministro Putifar, do Faraó, que lhe armou uma cilada para manter com ele relações sexuais. Por recusar a relação, José foi caluniado e preso:
E ainda que ela insistisse com José, todos os dias, para dormir com ela ou mesmo estar com ela, ele não atendeu. Um dia José entrou na casa para cumprir as tarefas e nenhum dos empregados estava em casa. A mulher o agarrou pelo manto, dizendo: “Dorme comigo”. Mas ele largou-lhe nas mãos o manto e fugiu correndo para fora. Vendo que lhe tinha deixado nas mãos o manto e escapado para fora, ela se pôs a gritar e a chamar os empregados, dizendo: “Vede! Meu marido trouxe este hebreu para abusar de nós. Aproximou-se de mim para dormir comigo, mas pus-me a gritar em voz alta. Quando viu que comecei a gritar por socorro, largou o manto junto a mim e fugiu correndo para fora”. A mulher ficou com o manto de José até o marido voltar para casa. Então falou-lhe nos mesmos termos, dizendo: “Esse escravo hebreu que nos trouxeste, veio ter comigo e quis abusar de mim. Quando me ouviu gritar por socorro, largou junto de mim o manto e fugiu para fora”. Ao ouvir o marido o que dizia a mulher, “assim é que me tratou teu escravo”, ficou furioso. Mandou prender José e o meteu no cárcere, onde se guardavam os presos do rei (GN 39,10-20).
O documentário nos indica violação dos direitos humanos, pois o acusado foi preso sem condições de auto-defesa. Também no período romano, entre 800 e 500 a.C., verifica-se ausência de cidadania e violação dos direitos humanos, visto que os escravos,
[...] para escapar da fome, [...] poderia se vender como cativo; os devedores que não conseguissem saldar sua dívida poderiam ser mortos ou vendidos como escravos pelo credor; as crianças abandonadas pelos pais, os prisioneiros de guerra etc. Os filhos dos escravos herdavam a condição dos pais (CÁCERES, 1996, p. 88).
Observamos mais violações dos direitos dos cidadãos no período medieval quando os trabalhadores sofriam a exclusão social da época sem direito a uma vida semelhante à dos soldados, senhores feudais e clérigos. Descreve Huberman, parecendo-nos não concordar, que
[...] alguém, nos séculos X a XII, tinha que pagar pelas diversões e coisas boas que os cavaleiros e damas desfrutavam. Também alguém tinha que fornecer alimentação e vestuário para os clérigos e padres que pregavam, enquanto os cavaleiros lutavam. Além desses pregadores e lutadores existia, na Idade Média, um outro grupo: os trabalhadores. A sociedade feudal consistia dessas três classes – sacerdotes, guerreiros e trabalhadores, sendo que o homem que trabalhava produzia para ambas as outras classes, eclesiástica e militar (HUBERMAN, 1985, p. 11).
Lembramos que as prisões e a escravidão na antiguidade se davam de forma natural. O que hoje consideramos como violações dos direitos da pessoa humana ou do meio ambiente, não o eram na antiguidade (BRANDÃO, 2002 : 27). São preocupações atuais, do mundo moderno e contemporâneo, e não dos períodos históricos anteriores.
Percebemos preocupações no século XVIII, 1776/87, na Declaração de Independência dos Estados Unidos, quando os americanos ao exporem as razões da separação com a Inglaterra, clamam o respeito aos direitos dos cidadãos daquela nação ao afirmarem que: a) Todos os homens foram criados iguais; b) Os direitos inalienáveis conferidos pelo Criador, entre os quais o de vida e de liberdade e o de os homens procurarem a própria felicidade; c) Sempre que qualquer forma de governo tentar destruir esses fins assiste ao povo o direito de mudá-lo ou aboli-lo e instituir um novo governo.
Percebemos também na França, entre 1789/99, quando a Revolução Francesa aprovou a declaração dos direitos do homem e do cidadão, apontando que o Estado é obrigado a respeitar e garantir os direitos humanos, sinal de que havia violação contra os direitos dos cidadãos. Verificamos também na primeira metade do século XX, na I Guerra Mundial, 1914/18 e na II Guerra Mundial, entre 1939/45. Voltemos nossa análise para os resultados estrondosos e degradantes de violações dos direitos humanos, sobretudo os causados pela II Guerra Mundial. Foram campos de concentrações, massacres de povoados, cidades e nações, assim como de domínio e escravização dos dominados.
A II Guerra Mundial iniciou-se com a perseguição alemã contra os judeus e estendeu-se a outros povos e países ocidentais e orientais. O seu chefe maior: Hitler, juntamente com seus assessores e comandantes subordinados, cometeram as mais profundas arbitrariedades que o mundo conheceu até aquele período. “Foi preciso todo o choque e todo o horror dos oitenta milhões de mortos da II Guerra Mundial para que o mundo criasse as Nações Unidas e os primeiros instrumentos de regulação internacional” (DOWBOR, 2002 : 135).
Após o fim da II Guerra e a criação das Organizações das Nações Unidas (ONU), uma Declaração Universal dos Direitos Humanos foi elaborada em 30 artigos e, em 1948 foi aprovada na Assembléia Geral das Nações Unidas por 148 nações. A Declaração é considerada o mais importante entre todos os documentos até agora elaborados de direitos humanos devido a ênfase adotada em defesa do “direito à vida, à liberdade e à segurança” dos cidadãos e cidadãs (art. III), proibindo a “escravidão”, “o tráfico”, “a tortura” e o “castigo cruel” (art. IV e V) e é resultado direto dos horrores praticados na II Guerra, compromisso das Nações Unidas em não permitir a prática de violações dos direitos das pessoas em seus próprios países e em países diferentes.
Vinte anos depois da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1968, uma Conferência realizada em Teerã fortificou a Declaração Universal dos Direitos Humanos através do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, acrescentando preocupações governamentais não contidas na Declaração Universal. Outras convenções também foram e vem sendo elaboradas e celebradas entre as nações até os dias atuais como: a) Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; b) Convenção contra a Discriminação da Mulher; c) Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes; d) Convenção sobre os Direitos da Criança; e) Carta africana dos direitos humanos e dos povos (“Carta de Banjul”); f) Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, entre outros.
Para estudarmos o respeito e proteção aos direitos humanos no Brasil é fundamental retrocedermos à invasão do Brasil pelos europeus. Ao invadirem, escravizaram os nativos, praticaram o tráfico e exploração de negros e posteriormente escravizaram e exploraram o próprio povo, ao mesmo tempo em que os governantes discutiam e assinavam convenções e acordos internacionais e os militares, orientados, apoiados e incentivados pelos americanos, aplicavam o Golpe Militar, em 31 de março de 1964. O golpe militar marcou no Brasil, a violência praticada contra os cidadãos, independente da classe social, etnia e ideologia política. Com o golpe militar, o que se presenciou nos anos de 1960/70 não foi muito diferente dos horrores praticados de racismo pela Alemanha contra os cidadãos judeus.
Impondo ordens, os militares instalaram a ditadura baseada na Doutrina da Segurança Nacional para combater o que eles chamavam de “comunistas”. Aquele período era o da Guerra Fria – estado de hostilidade sustentado por ameaças entre os poderes dos Estados Unidos e União Soviética – “guerra política, econômica ou psicológica” (COMBLIN, 1980 : 39-40) que, na visão dos americanos, justificava os golpes de Estado nos países de Terceiro Mundo e as práticas de torturas como método para obter informações e confissões.
O ano de 1968 marca o pior período militar para a sociedade brasileira. Com a promulgação do AI-5 (Ato Institucional nº 5) inicia-se uma perseguição política jamais presenciada no Brasil: prisões, torturas e mortes de atores sociais como estudantes, religiosos, políticos, sindicalistas e pessoas inocentes da sociedade. No poder, semelhante a Hitler, os militares brasileiros viam os cidadãos como inimigos ou potenciais inimigos, sobretudo as lideranças estudantis, sociais e políticas que foram perseguidas, presas e massacradas.
Os que defendiam os direitos humanos eram rotulados de defensores de presos e bandidos. A rotulação era imposta devido às defesas realizadas às lideranças presos políticos, resultando no surgimento, na Arquidiocese de São Paulo, dos CDDHs (Centros de Defesa dos Direitos Humanos) com plataforma na defesa dos direitos daqueles cidadãos. Os Centros tinham o objetivo de defender os presos políticos – visto estarem tendo seus direitos individuais e coletivos violados pelo Estado brasileiro, assim como o de denunciar as práticas de torturas ocorridas nos porões das prisões brasileiras (ARNS, 1985). Os CDDHs foram naquele momento histórico, político e social e já não são mais hoje, a voz dos presos políticos.
Observando os comportamentos dos governos militares e dos que foram a favor do golpe e perseguição militar, constatamos que por não concordarem com os defensores dos direitos humanos, divulgavam pela mídia e pelo sistema educacional e cultural, a ideologia de que os direitos humanos só serviam para defender presos – generalizando de forma pejorativa as palavras: preso, direitos humanos, socialismo e comunismo.
A esta altura são necessárias algumas perguntas sobre os presos da época. Que cidadãos estavam e eram presos durante o golpe militar? Ladrões? Contrabandistas? Assassinos? Estupradores? Sonegadores de impostos? Corruptos? Desviadores de dinheiro público? Não. Qualquer cidadão “suposto” era preso. Os militares prendiam as pessoas sem a certeza ou prova de possíveis crimes ou delitos cometidos. Prendiam por questões de suposta “segurança nacional” e torturavam física e psicologicamente para que confessassem o que queriam.
Dezenas de presos políticos descreveram as variadas formas de torturas utilizadas pelos militares: afogamento, pau-de-arara, chibatadas de fios, choques elétricos, ameaças, entre outras.
Passaram a lanhar o corpo do rapaz. Seu corpo rodopiava saltitando entre o trio de algozes, a pele abria-se em finos e alongados vergões vermelhos. Gritando, ele chorava aos pulmões, manchando de sangue as mãos que tentavam segurá-lo. Fiquei apenas de cueca. O oco dilatava-se em meu espírito, a revolta inundava meus olhos. O moço caiu, a chibata de fios continuou a cortá-lo. A dor abafava seus gritos; gemia e estrebuchava. Às vezes havia uma trégua. Os torturadores viam-no arrastar-se para o canto da sala, em busca de uma proteção inexistente, fitavam-me, olhavam entre si e recomeçavam o diabólico ritual [...]. Mais tarde eu saberia que se tratava de um preso comum escolhido ao acaso para que me “amaciassem” (BETTO, 1983, p.107).
Os presos políticos torturados que não obedeceram foram executados ou mutilados. Muitos não agüentaram os métodos utilizados e morreram, outros ficaram “loucos” e outros ao sobreviverem, documentaram as atrocidades sofridas e presenciadas. Apesar do fim da ditadura militar, em 1985 e, do restabelecimento da “democracia”, a experiência vivida pelos cidadãos brasileiros com a ditadura foi de uma sociedade sofrida, reprimida e traumatizada.
Diante do que até então analisamos, por que ainda persiste a preocupação sobre a proteção aos direitos humanos? Lembramos que aprovar leis, constituições, tratados, carta de intenções, convenções e pactos não são suficientes para que os direitos dos cidadãos sejam protegidos. Um exemplo claro é o que prescreve o art. 5º da Constituição Federal do Brasil, de 1988, mas que, na prática, não funciona:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]; II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei; III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; XLIX – é assegurado aos presos respeito à integridade física e moral; LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.
Direito da vítima ou do bandido?
Quando falamos em direitos humanos, falamos de direitos e deveres universais dos cidadãos, sejam homens ou mulheres, livres ou encarcerados, brancos ou negros, ocidentais ou orientais. O direito de um não termina – como se costuma dizer – quando começa o do outro. O direito não tem um começo e um fim. É infindável, universal e indivisível.
Assim sendo, a temática deste estudo merece um aprofundamento detalhado. Afinal, os direitos humanos pertencem à vítima ou ao bandido? Um rico tem mais direito que o pobre e a vítima mais direito que o bandido? De imediato adiantamos que os direitos humanos não pertencem a um ou a outro. Não são propriedades particulares. Pertencem a todos os cidadãos desde a gestação, independente de sua situação social, econômica, étnica, política, cultural, ideológica, religiosa, intelectual e comportamental. Os direitos humanos independe da classe social e etnia e de sua condição física ou psicológica: esteja o cidadão preso ou livre; trabalhando ou desempregado; estudando ou fora da escola; governando ou sendo governado. Os direitos assim como os deveres são para todos. Na conjuntura mundial que os membros da sociedade vivem, independente da situação financeira de cada um, do grau de escolaridade e do comportamento social, todos somos, em momentos distintos, vítimas ou “bandidos”. Quem nunca errou? Esta pergunta faz-nos recorrer a um registro do apóstolo João, por volta dos anos 30 d.C., quando Jesus enfrentou uma situação de apedrejamento de uma mulher adúltera e teve que arbitrar sobre seu futuro:
Trouxeram-lhe os escribas e fariseus uma mulher apanhada em adultério e, pondo-a no meio, disseram-lhe: “Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante delito de adultério. Na Lei, Moisés nos manda apedrejar as adúlteras; ma tu o que dizes?” Perguntavam isto para tentá-lo a fim de terem do que o acusar. Jesus, inclinando-se, escrevia com o dedo no chão. Como insistissem em perguntar, ergueu-se e lhes disse: “Aquele de vós que estiver sem pecado, atire-lhe a primeira pedra”. E inclinando-se de novo, continuou escrevendo no chão. E os que ouviam foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos (JO 8,3-9).

O presente texto faz-nos conjeturar a seguinte situação: em potencial, todos poderemos errar ou sermos induzidos ao erro. Pré-julgar sem dar o direito de defesa ao outro e agirmos emocionalmente – em detrimento do uso da razão – é condenarmos antecipadamente o outro sem a certeza do erro cometido. Há casos em que o erro, o adultério e o crime, aparentemente, sejam verídicos, o que não significa que de fato o sejam. Sobre estas situações, presenciamos quase que diariamente ações da polícia militar em todo o Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro e São Paulo, que após os atos praticados e divulgados pela mídia, como de autodefesa pelos atores armados, são geralmente desmentidos posteriormente, constituindo-se como atos de violência e arbitrariedade contra os cidadãos.
Tal estudo nos leva a questionar o por quê acontece o roubo, o assassinato e as prisões? Quem são as vítimas e os “bandidos” e como viviam? É certo rotular um cidadão de delinqüente? Como estão e se encontram as cadeias e presídios públicos? Os presídios e as cadeias recuperam os detidos ou contribuem com seu desmoronamento e aniquilamento enquanto cidadão? Aos presos deve-se oferecer punição ou prevenção? Repressão ou reeducação? Aniquilação ou recuperação? Como se busca a confissão de um preso? Pela tortura? Que tipos de torturas utilizam? Pau-de-arara? Saco molhado? Palmatórias? Choques elétricos? Posições desconfortantes? Água gelada? Afogamento? Tapas nos tímpanos? Agulhas penetradas entre as unhas? Pancadas nos rins?
Tratar de direitos humanos significa pensar a pessoa humana no todo, enquanto cidadão, além de um olhar jurídico sobre o que prescreve as leis. É necessário um olhar filosófico e sociológico, além do apego às leis, visto serem estas arquitetadas para proteger grupos e poderes com influências políticas e econômicas na sociedade.
A partir das questões levantadas, adiantamos que os atores sociais – independente de serem “vítimas” ou “bandidos” – não estão impunes de determinados comportamentos. Da mesma forma – e não estamos defendendo “bandidos” ou “vítimas” – instigamos um olhar diferente sobre a realidade dos direitos dos cidadãos, assim como sobre os comportamentos destes e os comportamentos dos representantes do Estado e de seus prepostos. Atualmente, quando se fala em defensores de direitos humanos, fala-se contra porque os militantes cobram atitudes, proteção, justiça, honestidade, transparência política, participação e democracia, em lugar da ameaça, da prisão e da tortura.
Por fim, os direitos humanos são condições essenciais para assegurar a satisfação das necessidades vitais do ser humano para a vida digna em sociedade: saúde, educação, salário mínimo decente, esporte e lazer, cultura, infraestrutura, emprego, moradia, desenvolvimento econômico, respeito ao meio ambiente, redistribuição da terra, participação popular nas decisões e administrações públicas, direito de se organizar, participar, ir e vir, penas alternativas e prevenção em lugar da punição. Sem a proteção destes direitos não nos parece haver cidadania.

Em discussão os Autos judiciais 564/2001 e 051/2004: dois estudos de casos
Propomo-nos doravante a apresentar duas situações reais documentados em autos, sobre violação dos direitos humanos contra idosos e portadores de deficiência. Adiantamos que centenas de vezes por dia, entidades de direitos humanos denunciam violações de direitos dos cidadãos em todo o mundo. São crianças e adultos moradores de rua; falta de moradia e trabalho; asilos desassistidos; ausência de políticas públicas e de proteção dos direitos humanos; corrupção; cadeias superlotadas; além de torturas físicas e psicológicas no trabalho, na residência, no poder público e nos presídios. Vamos ao caso a que nos propomos analisar.
Desde 1998, denúncias sobre maus tratos contra idosos em casas abrigos de Maringá passaram a ser apuradas pelo Ministério Público do Paraná. As investigações constam nos Autos de Ação Civil Pública, registrado sob nº 564/2001 – Juizado de Direito da Comarca de Maringá-PR – Sexta Vara Cívil, que após a constatação das irregularidades foi solicitado ao Juiz a “interdição (suspensão de funcionamento)” da Casa e Lar que funcionavam em Maringá (Volume nº 1, p. 3). Diz o Promotor Público que,
[...] procedimento administrativo instaurado, respectivamente, sob nº 01/98 e 28/2000, nesta Promotoria de Justiça, em virtude de notícias dos fatos preocupantes, foram levadas a efeito diversas diligências [...], concluindo pela efetiva ocorrência de várias irregularidades na administração e atendimento prestado pela entidade a idosos e pessoas portadoras de deficiência (VOLUME n. 1, 2001, p.7).

O resultado das investigações foi o fechamento das casas denunciadas, além de processos contra seus responsáveis. Em 04/06/2003, na sala de audiências da 6ª Vara Cível, perante o Juiz de Direito e do representante do Ministério Público, uma das denunciadas reconheceu as denúncias e adiantou ao Juiz que não tinha mais interesse na atividade. O Juiz, acreditando na procedência do pedido, decidiu pela extinção do processo.
No decorrer da tramitação do processo, já iniciada a audiência de instrução e julgamento, as requeridas houveram por bem reconhecer a procedência do pedido, até porque não tem mais interesse na atividade. Com o reconhecimento pedido impõem-se o julgamento do mérito nos termos do art. 269 inciso II, e, de conseqüência a extinção do mesmo e a imposição dos ônus da sucumbência, conforme o caputi (sic) do art. 26 do CPC as requeridas. Ante o exposto julgo procedente o pedido o que faço nos termos do dispositivo acima citado, condenando as requeridas nas custas e honorários estes arbitrados em R$ 100 reais, 10% sobre o valor da causa (VOLUME n. 3, p. 580).

Verificamos que denunciada e seu representante legal, não informaram ao Juiz que o “não tem mais interesse na atividade” referia-se apenas a Maringá, pois a mesma atividade já estava em funcionamento no município vizinho de Sarandi, agindo de má fé perante a justiça. De acordo com o exposto e frente aos antecedentes sobre a denunciada de violação dos direitos humanos, estabelece a Lei nº 10.741/2003 – Estatuto do Idoso –, art. 55º que, “As entidades de atendimento que descumprirem as determinações desta Lei ficarão sujeitas, sem prejuízo da responsabilidade civil e criminal de seus dirigentes ou prepostos [...] às penalidades, observado o devido processo legal”.
O mesmo artigo prescreve que quando houver antecedentes deve-se aplicar o que determina o parágrafo 4º, que determina: “Na aplicação das penalidades, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o idoso, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes da entidade”.
Ao mesmo tempo em que os Autos 564/2001 estava em julgamento, a proprietária que disse ao Juiz não ter “mais interesse na atividade”, desenvolvia a mesma atividade no município vizinho de Sarandi e após sete meses do arquivamento dos Autos, nova denúncia foi apresentada (depoente 1) contra a proprietária no Ministério Público do Paraná, em Sarandi/PR, dando início aos Autos nº 051/2004.
As denúncias foram confirmadas no dia 06 de fevereiro de 2004, por um ex-residente por 11 (onze) meses no mesmo “Lar” (depoente 2), entre os anos de 2002 e 2003, confirmando que a proprietária continuava exercendo as atividades em outro município enquanto respondia por violação dos direitos contra os idosos, em Maringá.
Analisando as denúncias e o que determina a Lei nº 10.741/2003, a Constituição Federal e o Código Penal, observamos que os denunciantes cumpriram o que as leis determinam em denunciar situações degradantes e violência contra os cidadãos idosos e portadores de deficiência, conforme o parágrafo 3º, do art. 55º, da Lei nº 10.741/2003 – Estatuto do Idoso.
Na ocorrência de infração por entidade de atendimento, que coloque em risco os direitos assegurados nesta Lei, será o fato comunicado ao Ministério Público, para as providências cabíveis, inclusive para promover a suspensão das atividades ou dissolução da entidade, com a proibição de atendimento a idosos a bem do interesse público.
A seguir analisamos alguns pontos das denúncias apresentadas ao Ministério Público de Sarandi, constadas nos Autos 051/2004, da Polícia Civil de Sarandi que, em se comparando às denúncias dos Autos 564/2001 (arquivado na Sexta Vara Civil de Maringá), observamos reincidência pela denunciada assim como abuso e violência contra os idosos e portadores de deficiência, através de maus tratos físicos e psicológicos, assim como aparente negligência do Ministério Público, conforme segue os exemplos:

Empurrões, tapas e socos
Depoente 1
Que os maus tratos físicos consistem em agressões contra as pessoas [...], por exemplo, empurrões, tapas e socos no rosto; que aqueles que reclamam bastante são ‘corrigidos; [...] que a palavra “corrigido” significa que os velhinhos apanham da [...] (proprietária) na forma descrita acima.

Depoente 2
que a [...] (proprietária) agredia fisicamente os idosos com tapas no rosto, ouvido e costas; [...] que por duas vezes a [...] (proprietária) tentou agredir o declarante, somente não consumando seu ato porque o mesmo se esquivou.

Agressões psicológicas
Depoente 1
que as agressões psicológicas consistem em dizer aos idosos que “eles são indigentes, não são nada, que se a família gostasse destes eles não estariam ali”; [...] que a [...] (proprietária) xinga os velhinhos de “filhos da puta, lazarentos, mendigos”, e outras palavras de baixo calão.

Depoente 2
que também presenciava agressões verbais por parte da aludida pessoa; [...] que a [...] (proprietária) dizia às mulheres que estas eram prostitutas e bêbadas.

Atendimento médico e dopagem com remédio
Depoente 1
que em 03 (três) meses que está trabalhando no local, a médica responsável só foi ao Lar uma vez; [...] que quando alguns idosos começam a reclamar em demasia, a [...] (proprietária) trata logo de dopá-los com medicamentos; [...] que em certa oportunidade [um dos idosos – grifo do MNDH/PR] começou a reclamar, tendo apanhado da [...] (proprietária), foi dopado com remédios e amarrado num pilar perto da lavanderia.

Depoente 2
que [...] dentro do lar existem pessoas boas de saúde que são “dopadas” pela [...] (proprietária); [...] que as pessoas de fora não sabem o que se passa lá dentro; [...] que a pessoa conhecida por “Tatu” foi abrigada na aludida casa lar, em bom estado de saúde e 24h depois já não conversava direito, devido a forte medicação ministrada pela [...] (proprietária).

Amarrados
Depoente 1
que em certa oportunidade, o Sr. Berto começou a reclamar, tendo apanhado da [...] (proprietária), foi dopado com remédios e amarrado num pilar perto da lavanderia.

Depoente 2
que em certa ocasião, um senhor chamado Agenor ficou amarrado no pátio, em um banco de madeira, das 20h até às 2h da madrugada, amarrado em um pilar; que nessa noite estava chovendo e fazia frio.

Outros pontos dos depoimentos também podem ser comparados nos Autos 051/2004, assim como confrontados com vários depoimentos dos Autos 564/2001. Segundo o art. 5º da Constituição Federal do Brasil, promulgada em 1988, o inciso III, prescreve que: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” e no inciso X diz: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
A mesma Constituição, no art. 230º, determina que: “A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”.
O art. 2º do Estatuto do Idoso determina que ao idoso deve-se dar “proteção integral” e “preservação de sua saúde física e mental”. Acrescenta o art. 10º, parágrafo 3º, que todos que se omitirem poderão responder pela omissão, visto ser “dever de todos zelar pela dignidade do idoso, colocando-o a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. Determina também o parágrafo 2º do mesmo artigo que, “[...] o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, de valores, idéias e crenças, dos espaços e dos objetos pessoais”.
Estudando com mais cuidado as leis, observamos que, com exceção dos denunciantes, os órgãos competentes para investigação, defesa e proteção dos direitos dos cidadãos: Ministério Público, Polícia Civil, Poder Judiciário e Prefeitura, na situação aqui analisada, de Sarandi/PR, foram omissos e desconsideraram os fatos denunciados, conforme determina o art. 4º do Estatuto do Idoso de que, “Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei”.
Percorrendo os Autos, percebe-se que as provas parecem ter sido construídas pela Polícia Civil e Ministério Público em favor e defesa da denunciada em prejuízo direto e inconstitucional dos idosos e portadores de deficiência, contrariando o art. 74º, inciso III do Estatuto que prescreve ser competência do Ministério Público, “atuar como substituto processual do idoso em situação de risco, conforme o disposto no art. 43 desta Lei”, até que se prove o contrário.
A indicação da legislação em favor da denunciada torna-se mais evidente quando observamos que o Ministério Público e a Polícia Civil não realizaram esforços para levantar antecedentes da denunciada, mesmo tendo conhecimento – folhas 27 dos Autos 051/2004 – optando por concluir e arquivar os Autos em menos de 60 dias de sua abertura.
Observa-se que as denúncias constatadas nos Autos 564/2001, somadas às denúncias dos Autos 051/2004, compreende-se que a violadora não deveria ter ficado ilesa, podendo estar colocando em risco a proteção dos direitos dos idosos. Entende-se neste caso que o prejuízo foi do parágrafo único do art. 49º, da Lei nº 10.741/2003, que determina que “O dirigente de instituição prestadora de atendimento ao idoso responderá civil e criminalmente pelos atos que praticar em detrimento do idoso, sem prejuízo das sanções administrativas” e do art. 44 que prescreve que: “As medidas de proteção ao idoso previstas nesta Lei poderão ser aplicadas, isoladas ou cumulativamente, e levarão em conta os fins sociais a que se destinam e o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários”.
Compreendemos que a não punição significou carta branca para novos atos de violação contra os direitos humanos, além de descrédito às leis e aos poderes constituídos de proteção às leis, tirando o incentivo a possíveis denunciantes sobre violação dos direitos dos cidadãos e do meio ambiente.
Constatamos que o Lar, no momento das denúncias e desta pesquisa, era totalmente fechado, dando a impressão de casa de reclusão ou detenção, não tendo, até meados de abril de 2004, nenhuma identificação externa de que no local funcionava uma casa abrigo, contradizendo o art. 37º do Estatuto do Idoso, parágrafo 2º, que diz que “Toda instituição dedicada ao atendimento ao idoso fica obrigada a manter identificação externa visível, sob pena de interdição”. Por ser o lar totalmente fechado, indica-nos violação do direito dos idosos “de ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários” (art. 10º, parágrafo 1º, inciso I), ausência de “participação na vida familiar e comunitária” (inciso V) e na “participação na vida política” (inciso VI).
Em nosso estudo de caso sobre o referido Lar observamos ainda outro agravante que é o fato de estar em um mesmo espaço físico: idosos, enfermos e deficientes, desrespeitando o inciso II, do art. 79º, que prescreve: “atendimento especializado ao idoso portador de deficiência ou com limitação incapacitante” e o inciso III, que determina “atendimento especializado ao idoso portador de doença infecto-contagiosa”.
De acordo com os depoimentos, constatamos que o art. 140º, do Código Penal Brasileiro, prescreve que “Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro” terá como “Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa”. No entanto, levantamos situações de ofensas e injúrias nos Autos 051/04 que sequer foram consideradas pelo Ministério Público e Polícia Civil de Sarandi, reforçando a tese dos representantes do Estado em favor da acusada, ao arquivarem os Autos, em detrimento e prejuízo dos idosos, da Lei nº 10.741/03, da Constituição Federal e do Código Penal.
O parágrafo 2º do art. 140º do Código Penal estabelece que “se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes”, o causador da violência pode ter como pena uma “detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa, além da pena correspondente à violência”. A penalidade, de acordo com o que determina o inciso III, do art. 141º do Código Penal, pode aumentar “de um terço, se qualquer dos crimes é cometido: [...] na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria”, fatos perfeitamente observáveis nos Autos.
Para finalizar o presente estudo, percebe-se claramente descumprimento das leis de proteção aos idosos, sobretudo do art. 5º da Lei 10.741/03 por parte da proprietária do Lar, pela inobservância do Estatuto. O mesmo ocorrendo com o Ministério Público por não ter salvaguardado a integridade moral e psicológica dos internos; da Polícia Civil que priorizou ouvir em demasia o lado da denunciada em detrimento e prejuízo, físico, moral e psicológico dos idosos, dando direção às investigações e no parecer, induzindo o inquérito e o promotor público para solicitar seu arquivamento; do Juiz que, sem questionar e averiguar as denúncias, acatou os pareceres da Polícia e do Ministério Público, determinando o arquivamento do processo e; da Prefeitura do Município de Sarandi – Secretaria de Ação Social – que, ciente dos fatos, não tomou providências para salvaguardar a integridade física, moral e psicológica dos idosos e deficientes lá residentes, internados ou enclausurados.
Percebemos em nossa investigação que todos descumpriram direto e indiretamente o parágrafo 3º, do art. 10º, do Estatuto do Idoso que determina ser “dever de todos zelar pela dignidade do idoso, colocando-o a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. O parágrafo 3º é reforçado pelo inciso III, do art. 5º do Estatuto do Idoso e pelo art. 230º da Constituição Federal do Brasil.
Não nos cabe presunções, mas no caso das denúncias resultante nos Autos 051/2004, o Ministério Público sequer exerceu seu poder de protetor dos direitos sociais e humanos, solicitando ao Poder Executivo (Prefeitura), informações sobre a situação legal do referido Lar, assim como verificações através da Secretaria competente, sobre seu funcionamento, com pareceres sobre a vigilância sanitária, saúde, convívio comunitário e familiar e situação psicológica dos internos, deixando os Autos 051/2004 deficitário e tendencioso, mesmo estando ciente o Promotor Público e a Polícia Civil que a proprietária já havia tido as mesmas atividades na cidade de Maringá (folha 27 dos Autos 051/2004), optando por não levantar investigações sobre o passado da proprietária do Lar e reincidência.

Referências
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CÁCERES, Florival. História geral. 4. ed. São Paulo: Moderna, 1996.
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FILHO, J. Thomaz. Reclamação universal dos direitos humanos. Petrópolis: Vozes, 1999.
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 20. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
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MELLO, Leonel Itaussu A.; COSTA, Luís César Amad. História antiga e medieval: da comunidade primitiva ao Estado moderno. São Paulo: Scipione, 1993.
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REIS FILHO, Daniel Aarão; SÁ, Jair Ferreira de. Imagens da revolução – documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961 a 1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985.
VITA, Álvaro de. Sociologia da sociedade brasileira. 6. ed. São Paulo: Ática, 1997.

Direito a moradia: um direito humano

Alberto Abraão Vagner da Rocha*
Elias Canuto Brandão**

Artigo inicialmente publicado no livro "Direito e Integridade Humana".
Organizadores: Elias Canuto Brandão, Maria Aparecida Cecílio e Marta Silene Ferreira Barros.
Maringá/PR-Brasil : Programa de Pós-Graduação em Geografia-UEM, 2002.

Introdução

A impossibilidade de pagamento de altas mensalidades da “casa própria” e os despejos de mutuários realizados em todo Brasil pela Caixa Econômica Federal e pelo Sistema Financeiro de Habitação, resultou em um bate-papo, em novembro de 2000, entre eu, Elias Brandão e o advogado Alberto Abraão Vagner da Rocha, sobre o direito à moradia.
Nossa conversa tem por objetivo compreender como se dá e por que ocorre a violação do direito à moradia contra os cidadãos. Aqui está uma contribuição riquíssima, em forma de bate-papo, a todos que dependem, devem ou pagam a casa própria através de financiamento bancário e que passam dificuldades de pagamento, quitação ou negociação com os órgãos representativos do governo municipal, estadual ou federal.
Procuramos, como resultado do descontraído bate-papo, levantar algumas informações, orientações e noções mínimas sobre o direito à moradia, infelizmente desrespeitado pelos diferentes governos – sobretudo o Federal – e por seus órgãos representantes – o Sistema Bancário e o Sistema Financeiro de Habitação.
A partir deste momento convidamos o leitor a acompanhar e a participar do bate-papo. Alertamos que nem todas as dúvidas serão contempladas na conversa, mas tentamos dialogar com as informações básicas.

O bate-papo

Elias Brandão = Alberto, é possível fazer uma abordagem geral sobre o direito à moradia?
Alberto Abraão = É possível. O início, vamos dizer, a gênese do direito à moradia, está nos primórdios dos tempos.
A questão da moradia está diretamente ligada à necessidade de segurança. Segurança em sentido amplo. O homem, a princípio, satisfez essa necessidade, utilizando-se dos recursos naturais. Abrigava-se em cavernas e outros acidentes naturais. Nesses locais estabelecia seu território, espaço inacessível aos demais. Somente o dono da área, sua fêmea, seus filhotes e seus próximos compartilhavam o uso deste bem.
Bem mais à frente, com o avanço do homem, a apreensão de técnicas e a invenção de instrumentos de trabalho adequados às suas necessidades, houve a substituição dos abrigos naturais por construções estruturadas de acordo com as exigências e possibilidades próprias da época e de cada grupo ou classe de pessoas. Nesse período, a sofisticação física também passa por uma outra segurança reclamada pelo homem: a espiritual. E que sofisticação física é esta? A casa. Esta ganha um sentido religioso. Já não é apenas uma segurança contra os animais bravios. Mas contra fenômenos da natureza que não consegue entender. As intempéries levam o homem a transformar a casa num santuário, ganhando, portanto, sentido religioso. O metafísico passa a plano mais importante que os de aspectos físicos. Cada casa tinha seu fogo sagrado. Reverenciava seus deuses, passando o culto de geração a geração. Aí está a origem de muitos ritos religiosos que até hoje praticamos sem conhecer o porquê. Com influência, inclusive, na arquitetura das casas. Estas tinham um nicho[1] na parede frontal externa, para acomodar o santo de devoção. Isto hoje se vê apenas em algumas construções no interior do país. Podemos concluir, portanto, que o direito à moradia resultou dessa necessidade de segurança composta por elementos físicos e metafísicos. Incorporou-se à personalidade humana de tal forma que se tornou instituição jurídica reconhecida por todos os povos, como direito social básico para a estruturação da pessoa humana em todos os seus aspectos.
Também poderíamos mencionar que nessas necessidades físicas e espirituais em que se amparou o instituto de direito à moradia, também é o nascedouro do direito à propriedade. As grandes discussões que se tem hoje tanto na área urbana quanto na rural, estão diretamente ligadas ao direito de propriedade. E a casa, urbana ou rural, é o espaço territorial mínimo que não se deve negar a nenhum ser humano.
Elias Brandão = É aí que surgiu o Sistema Financeiro Habitacional?
Alberto Abraão = O Sistema Financeiro Habitacional surge para satisfazer esta necessidade. Para implementar este direito de propriedade são necessários recursos financeiros. Num país como o Brasil, de dimensões continentais, apenas o governo federal não teria condições de atender. Então se buscou com o Sistema Financeiro Habitacional, estruturado a partir de 1964, reunir as ações privadas e outros projetos com recursos de todas as esferas de governo: municipais, estaduais e federal.
Com isto se pretendia estruturar uma grande fonte de financiamento. Uma fonte de recursos, alimentada especialmente pelo Fundo de Garantia e do próprio Tesouro Estatal para cumprir o objetivo. O Sistema surge daí, então.
O que acontece com o Sistema? Nasce para atender basicamente à população de baixa renda, que teria, através de financiamento habitacional, acesso a tais recursos, de forma mais acessível, com juros subsidiados, correção monetária vinculada aos rendimentos do trabalhador, de modo a satisfazer esse direito sem criar dificuldades da manutenção da família nas demais necessidades, como, por exemplo, saúde, a alimentação...
O sonho da casa própria que buscava o Sistema satisfazer, no entanto, acabou tendo distorções. Porque o Sistema acabou abrigando dois interesses divergentes: satisfazer o interesse do cidadão de possuir casa própria e, ao mesmo tempo, propiciar rendimentos aos recursos captados pelos agentes financeiros. Sabemos que interesse social e especulação financeira são incompatíveis. Estão aí para provar as questões agrícolas. O Sistema que deveria financiar a produção, priorizou o rendimento do capital. E o que aconteceu? Muitas propriedades rurais foram expropriadas pelos Bancos ou vendidas pelos pequenos agricultores para incorporação aos atuais latifúndios existentes em nossa região. Assim também aconteceu com o Sistema Financeiro Habitacional. Teria a função de financiar a construção civil, passou a garantir a casa própria, mas expropriou os poucos rendimentos dos trabalhadores aprisionados nos impagáveis financiamentos. Quando não puderam mais pagar, foram despojados de suas casas como foram os agricultores de suas terras.
E por que isto aconteceu nos financiamentos habitacionais? Ninguém poderia ter o financiamento desvinculado de seus rendimentos salariais. E teve. Aí entra a questão do salário mínimo que legalmente tem a função de satisfazer as necessidades fundamentais que é saúde, habitação, vestuário, educação..., de uma família. Virou uma farsa. Ninguém consegue satisfazer estas necessidades e sequer uma prestação mínima do Sistema. Portanto, o salário mínimo amplo e suficiente às comentadas necessidades só está na Lei.
Elias Brandão = Prestação maior do que o salário que ele recebia.
Alberto Abraão = Muito maior. Muito maior. Mas veja você o que é o Sistema Financeiro. Eu diria que, na forma atual, constitui-se em criminalidade oficial. Porque embora o Sistema preveja a vinculação do aumento da prestação ao ganho salarial, os agentes financeiros não observam esta regra. Isto porque, enquanto a prestação tem seu aumento preso ao do salário, o saldo devedor tem seu reajuste com base nas taxas financeiras, com rendimentos determinado pela TR. Essas taxas, como sabemos, sempre foram superiores aos reajustes salariais. Especialmente nos últimos anos, a partir de 94 com o Plano Real.
Elias Brandão = Anualmente o Agente Financeiro corrige o valor da prestação, enquanto o salário...
Alberto Abraão = Se fosse anualmente, a situação não seria tamanha, mas não é anual, é mensal. Os rendimentos sobre o saldo devedor são computados mensalmente. Assim o mutuário nunca consegue amortizar o débito com o valor da prestação paga mensalmente. Não consegue fazer esse pagamento porque sempre, todo pagamento realizado é absorvido só pela correção monetária.
Elias Brandão = A correção é feita em cima do saldo devedor.
Alberto Abraão = Do saldo devedor.
Elias Brandão = Para depois a pessoa pagar, se conseguir pagar.
Alberto Abraão = A dificuldade para o pagamento é determinada também, em virtude de um monopólio de seguro gerido pelo Sistema Financeiro Habitacional. Esse seguro é pago mensalmente. Absorvia mais ou menos em torno de 20 a 30% do valor da prestação e outros encargos mensais. Quer dizer, é um seguro altíssimo. Este pagamento não é contado para a amortização do saldo devedor, destina-se só para o seguro. E tem mais: há um percentual do valor pago mensalmente que pertence ao Fundo de Compensação e Variação Salarial. Fundo este que tem por objetivo o pagamento dos saldos devedores residuais que permanecem após o término do prazo de financiamento. Hoje este Fundo já não existe mais. Para quem tinha financiamento coberto pelo FCVS, havia, ao menos uma tranqüilidade, você pagava sem se preocupar com o saldo devedor, pois sabia que no término do prazo contratual estava encerrada a sua obrigação e teria a quitação do contrato de financiamento.
Elias Brandão = O que é o FCVS?
Alberto Abraão = É o Fundo de Compensação de Variação Salarial. Ou seja, significa que se seu salário subiu menos do que a prestação, então você já estava predestinado a se valer deste fundo para cobertura do valor remanescente de seu débito junto ao agente financeiro. Na verdade, o Sistema não funcionou porque os governos, tanto municipais, quanto estaduais e federal, nunca colocaram recursos do Tesouro para suprir esse direito à habitação, para satisfazer esse direito fundamental da pessoa humana. Antes incluído apenas na Declaração de Direitos Humanos, com essa origem que nós comentamos inicialmente, e hoje também inserido no texto constitucional, por meio da Emenda Constitucional 26/2000. Aí que entra o nó da questão. Hoje o Sistema tem que se adequar à exigência constitucional e a gente percebe que o Governo busca adequá-lo à Constituição. Sem, no entanto, colocar dinheiro do Tesouro. Mas chegará um momento em que esses recursos terão que ser disponibilizados pelos governos municipais, estaduais e federal. Só assim poderão cumprir este programa estatal. Não dá mais para utilizar apenas dinheiro do Fundo de Garantia, dinheiro do trabalhador, para financiar o Sistema.
Elias Brandão = Então, se o Governo não participar...
Alberto Abraão = Se não participar com recursos próprios não tem solução.
A bem da verdade, a única esfera de governo que tem participado dos programas habitacionais é a municipal, pois esta é que sente de perto o drama da falta de moradia. Os governos municipais são os únicos que entraram com recursos do Tesouro para a construção de conjuntos habitacionais. São mais sensíveis para esta questão. Organizam programas subsidiando parte do investimento com a doação de terreno e de toda a infra-estrutura, como por exemplo água, luz, esgoto e asfalto, e financiam, quase sempre através da Caixa Econômica Federal, apenas a construção. Assim o valor da prestação fica limitado apenas à construção e de acordo com a capacidade de pagamento do trabalhador. Infelizmente, poucos são os programas habitacionais promovidos pelos governos municipais, por isso em uma mesma cidade temos conjuntos sem qualquer infra-estrutura.
Elias Brandão = Esta não era computada.
Alberto Abraão = Não. Neste tipo de Programa a infra-estrutura não é computada.
Elias Brandão = E o que vinha da Caixa poderia ser super faturado.
Alberto Abraão = Dependendo de quem administra a construção pode sim, ser superfaturado. Nós temos a experiência do Programa Casa da Família que em Maringá construiu o Conjunto Requião. É um exemplo de programa realizado com a participação do governo municipal. Este subsidiou a infra-estrutura necessária e gerenciou a construção das casas utilizando a autarquia municipal responsável por obras, o SAOP, além de organizar os mutuários em mutirão.
O governo do Estado, por sua vez, intermediou junto ao Sistema Financeiro Habitacional o empréstimo dos recursos para a edificação das casas. Com isto, temos em Maringá um conjunto habitacional com casas de bom padrão de qualidade e tamanho e com prestação que se limita a vinte por cento do salário mínimo. Isto faz com que a inadimplência seja próxima de zero. Ao mesmo tempo, temos outros conjuntos, como por exemplo, o Sol Nascente, onde além da qualidade da construção desagradar o mutuário, o valor da prestação é bastante variável e se fixa entre o mínimo de um salário a dois salários mínimos.
Esta situação além do sentimento de injustiça, porque as pessoas não compreendem porque as pessoas de um conjunto habitacional possam ter uma situação favorável e, ao mesmo tempo, outro onde não conseguem pagar e são despejados.
Veja você que na comparação destes conjuntos não se pode dizer que houve super faturamento, pois grande parte dos custos da construção do Conjunto Requião foram subsidiados pelo município. Pode-se, no entanto, afirmar que com a participação do Estado, compreendendo neste município, Estado Membro e União, resolve-se com facilidade o problema habitacional no Brasil, retirando o mutuário das garras do sistema financeiro.
Não se pode impor, porém, que somente o município entre com recursos, como foi o caso utilizado como exemplo, pois o problema habitacional é de responsabilidade de todas as esferas de governo. Não é justo, portanto, somente ao município a garantia deste direito fundamental, pois outras áreas de investimentos ficariam desassistidas. Pode-se afirmar também que a gerência da construção das casas pelo governo municipal em conjunto com os mutuários evita-se a corrupção. Basta ver que as casas onde se tem alto índice de inadimplência e estão se realizando os despejos pelos agentes financeiros em comum observam-se os seguintes aspectos: foram edificadas por construtoras, sem a participação dos mutuários, os materiais utilizados são de baixa qualidade, as casas são pequenas, em alguns conjuntos são de apenas vinte e sete metros quadrados e, no entanto, o valor das prestações na média é de um salário mínimo.
Elias Brandão = Então o problema do Sistema Financeiro de Habitação, como você está colocando, não é igual em todos os locais, em todas as cidades ou regiões?
Alberto Abraão = Não, porque o Sistema como o nome revela busca organizar através de Lei as diversas iniciativas habitacionais, as experiências e projetos dos governos estaduais e municipais, estimulando a iniciativa de empreendimentos privados. Então tudo o que você quiser fazer na área habitacional o Sistema, a princípio, favorece. Eu diria que é uma hipocrisia porque ele absorve para si o crédito das iniciativas. Diz que é o governo federal que as implementou e está garantindo casas às pessoas. Na realidade não está garantindo nada. A única coisa que faz é dar acesso à iniciativa privada, às iniciativas públicas locais ou estaduais e ao fundo de garantia para captar recursos que são geridos pela Caixa Econômica ou bancos privados. Para fazer somente isto não precisaria do Sistema.
Elias Brandão = E é um dinheiro do trabalhador.
Alberto Abraão = É um dinheiro do trabalhador. O Sistema Financeiro não cumpriu sua finalidade primeira, que é assegurar acesso à casa própria para as pessoas de baixa renda e para aquelas, eu diria, em desvantagem social, as quais sequer têm renda suficiente para pagar uma prestação. Embora o Sistema tenha previsão de atendimento destes casos por um Fundo de Assistência Habitacional, foram pouquíssimos os programas dirigidos às pessoas nesta situação social. Em síntese, os mutuários tiveram apenas a cobertura do FCVS, cujo benefício somente é usufruído no final do contrato com a quitação do saldo devedor impagável. Contudo, como já afirmei, os recursos do FCVS são garantidos pelos próprios mutuários. No valor da prestação mensal pagam três por cento a mais para a composição financeira deste Fundo. Em síntese, o Governo não faz nada, quem faz são as pessoas que integram o Sistema e os trabalhadores com os recursos de seu FGTS. Justamente por este motivo o Sistema Financeiro Habitacional está falido. Porque sem dinheiro do governo não é possível garantir o direito à moradia.
Agora o governo procura renovar o Sistema. Cria um programa de arrendamento de imóvel residencial. Mas não disponibiliza recursos para subsidiar a construção e não cria mecanismos de controle dos custos destas construções.
Elias Brandão = Não mexe na estrutura.
Alberto Abraão = Não na estrutura. Esta é a mesma. Joga o cidadão para o Sistema, nos braços dos agentes financeiros. A mudança, a nosso ver, vai facilitar o despejo. Esse programa veio apenas para contornar o problema, pois com a economia paralisada e o alto índice de desemprego na nossa região, a inadimplência é inevitável.
Elias Brandão = Então, antes o Sistema Financeiro de Habitação prejudicava o trabalhador porque o governo, que se dizia participante, não participava.
Alberto Abraão = Não participava e não participa.
Elias Brandão = Isso. E os trabalhadores com um salário baixíssimo não conseguiam pagar. No primeiro momento não eram despejados e agora com esse novo Sistema piorou.
Alberto Abraão = Piorou, piorou porque a retomada do imóvel é prevista para um prazo de 90 dias. Embora haja certeza do valor mensal a ser pago durante o período do contrato, limitado a um por cento do valor total do imóvel, não atende à reivindicação dos mutuários que buscam esta limitação ao percentual máximo de vinte por cento do salário mínimo. Para os mutuários esta forma de equivalência lhes dá maior segurança por se harmonizar com a realidade por eles vivida. Com isso, não eliminariam a preocupação com o acréscimo do valor da prestação e com o fantasma do saldo devedor.
Elias Brandão = O saldo devedor é sempre maior.
Alberto Abraão = Sempre maior. Temos, portanto, um Sistema injusto. A pessoa paga até o limite de suas possibilidades. Não consegue mais pagar e é despejado sem qualquer consideração com as suas necessidades humanas. Em outras palavras, é sugado ao máximo. Mais que seus recursos financeiros, tem sua vida expropriada. É, portanto, uma forma de escravização. O sonho da casa própria para quem entra no Sistema Financeiro Habitacional se torna um pesadelo. Essa máxima de experiência está popularizada, e todos temem fazer um financiamento para a aquisição da casa própria.
Elias Brandão = Alberto, alguém participa do Sistema Financeiro e não consegue pagar. A Declaração Universal dos Direitos Humanos e a própria Constituição Federal dizem que todo cidadão tem direito a moradia assim como tem direito a educação, a saúde... A pessoa não consegue pagar não porque queira, mas porque ficou desempregada ou porque o próprio contrato, de forma camuflado prejudica o mutuário. Ele pode ser despejado?
Alberto Abraão = Não, não pode. Não pode ser despejado.
Elias Brandão = E o que fazer?
Alberto Abraão = Olha. É uma grande equação jurídica que tem que ser resolvida. Entre a satisfação desse direito fundamental e a proteção do Sistema Financeiro, porque nós vivemos sobre o domínio desse Sistema em todos os setores de nossa vida, devem prevalecer os direitos fundamentais. É o que nós comentávamos anteriormente. Que o governo tem que acabar com essa hipocrisia e encarar a situação com seriedade.
Quer dizer. Ou entra com recurso do tesouro federal, estadual ou municipal e banca essa situação de vez ou ele não vai resolver nunca o Sistema. A Lei que criou o Sistema Financeiro Habitacional garantia através de um fundo de assistência habitacional, Fundahab, o acesso à casa própria, este deve ser melhorado para permitir a permanência do cidadão em sua casa. Para tanto, o Estado tem que se humanizar e além das ações gerais, estruturar-se para avaliar os casos particulares de inadimplência. As pessoas que deixam de pagar o fazem não por desonestidade, mas por impossibilidade. E, em tais situações muitos mecanismos podem ser criados como, por exemplo, a suspensão da cobrança de prestação até que o mesmo encontre novo trabalho ou seja designado para a realização de trabalhos sociais. Benefício este com amplas possibilidades de ser implementado, pois não há dispêndio de recursos, como sucede no seguro desemprego.
Elias Brandão = Fundhab, o quê é?
Alberto Abraão = Era um fundo justamente para dar acesso às pessoas que não tinham renda, ou que essa fosse mínima. São pessoas em desvantagem social, que eram contempladas por esse fundo. Mas a previsão legal não significa necessariamente a realização deste direito. Porque poucos foram os programas estruturados para financiamento por este fundo. Poderíamos dizer que foram apenas projetos pilotos, nada mais. Só esta conclusão podemos ter, quando se atende num déficit habitacional de milhões de casas não mais que um por cento da demanda. Você encontra pelo Brasil pessoas que tiveram acesso a esse tipo de financiamento. Mais na nossa realidade local é praticamente inexistente.
Em termos legais, o Direito Fundamental à moradia fundamentava-se tão-somente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, mesmo que pudéssemos defender a recepção deste princípio pelo nosso sistema constitucional, porque é princípio básico nos Estados de Direito. Hoje, no entanto, este princípio está expresso na Constituição Federal. Isto ajudará em muito as ações judiciais contra o Sistema Financeiro Habitacional, obrigando o governo a adequar seus programas habitacionais para este direito básico, para a estruturação familiar, que é o direito de moradia.
O que temos que fazer para que esse direito seja respeitado? Realizar uma luta com o objetivo de sensibilizar o Poder Judiciário. O Judiciário tem que avançar. Além dos movimentos sociais que dão conteúdo e orientação política aos poderes constituídos, os advogados terão que buscar o aprimoramento de suas habilidades nessa área para que possamos fazer o ordenamento jurídico ser respeitado a despeito da alegada falta de recursos dos governos. Basta o governo estancar a corrupção e o dinheiro aparece.
É importante que o Poder Judiciário esteja atento e ouça o clamor social antes de assinar uma petição de despejo. É necessário ter uma visão social dessa realidade. Inclusive deveria ser informado da situação social do mutuário por assistente social. Profissional este que infelizmente ainda não integra a estrutura funcional do Judiciário. Isto impediria que o Judiciário pudesse acolher situação injusta, representada eventualmente por mutuário que, embora possa pagar, opta por não fazer o pagamento. Fora dessa situação, de eventual abuso de direito pelo mutuário, o cidadão não poderia ser despejado.
Elias Brandão = E como os juizes vêem isso? Eles tentam fazer esse conhecimento, essa busca, essa pesquisa geral?
Alberto Abraão = Alguns sim. Infelizmente nem todos fazem.
Elias Brandão = Ou eles seguem a Caixa. O Sistema Financeiro solicitou o despejo, eles...
Alberto Abraão = Atualmente está havendo maior preocupação dos juizes para tais casos, mas são iniciativas sem amparo estrutural do Poder Judiciário, como comentei anteriormente.
Elias Brandão = Não leva em consideração se a família está podendo pagar, se está desempregada ou empregada.
Alberto Abraão = Na prática, a favor do mutuário em processo de despejo, tem-se apenas a demora judicial para decretá-lo. Os juizes acabam tendo a sensibilidade de não colocar as pessoas em despejo. Despejar uma família cria um problema social muito grande. Então os Juizes acabam concedendo prazo para evitar o despejo, mas resolve-se o problema de forma indireta. Não é o melhor caminho, porque há uma legislação prevendo o despejo apenas pela falta de pagamento.
O que fazer? Temos que avançar nas discussões e enfrentar o problema de frente. Não podemos contorná-lo. Temos que buscar as teses que contemplem e assegurem os direitos dos mutuários.
Na nossa avaliação, uma das teses importantes, seria: não basta a falta de pagamento, como é um direito fundamental do ser humano, o despejo teria que ser visto só em função da condição de pagar. Não por falta de pagamento, mas a recusa de pagamento por aquele que pode e tem meios para fazê-lo. Isto pode ser avaliado a partir da possibilidade econômica do mutuário e não em função da simples inadimplência.
É assim que o sistema funciona hoje. Não pagou, determina-se o despejo. O ordenamento jurídico prevê que moradia é direito fundamental. Todas as normas devem convergir para satisfazer esse princípio e as normas atuais não estão em plena consonância com o ordenamento jurídico.
A vontade legal é de satisfazer essa necessidade. Mas a ação acaba por satisfazer, em face de leis de menor poder hierárquico, o interesse do Sistema Financeiro que vive em função dos ganhos dos recursos aplicados.
E o que ele busca? Quanto maior a possibilidade de empréstimo, maior a possibilidade de ganho. Então você tem um Sistema Financeiro, para alguns, altamente interessante.
Elias Brandão = Vive o Sistema Financeiro em função destes empréstimos.
Alberto Abraão = Sim.
Elias Brandão = O Sistema Financeiro vive da desgraça alheia.
Alberto Abraão = Da desgraça alheia. É um Sistema diabólico, viu. Por que? Como é que você vai cumprir a ordem jurídica estabelecida, com uma distorção dessa natureza? Aí é que entra a questão ideológica: você ter a disposição política de fazer cumprir a ordem jurídica. Porque a ordem jurídica é a de satisfazer essa necessidade básica e não a do Sistema Financeiro Habitacional. Portanto, não importa de quem seja o dinheiro. Se esse dinheiro é de terceiro, o governo tem que entrar com recursos do Tesouro para cobrir eventual prejuízo que o Sistema causou a esse terceiro. Busque dinheiro de todos, mas tem que entrar com recursos do Tesouro. Só não pode deixar desabrigada a família que não tenha condições de pagar. Para isso é que existe governo. Ele não pode ser indiferente a esta realidade. Ele tem que entrar com programas específicos para cumprir, prevendo todas estas situações, seja de baixa renda, seja do cidadão em desvantagem social que não tem sequer renda para cumprir e entrar no sistema. E seja também daquele de classe média, padrão mais alto que também eventualmente precise entrar no Sistema Financeiro Habitacional.
Elias Brandão = Você comentou que aí entra a ação do governo, a responsabilidade do governo. Tudo bem. E dos mutuários? Por exemplo: diante de uma situação de despejo ou de um saldo devedor que sobe demais e mesmo ele ganhando razoavelmente bem, daqui há alguns anos ele não vai conseguir pagar. Corre esse risco, sobretudo num país igual ao Brasil ou em outro da América Latina, que não deve ser diferente o Sistema Financeiro. O que fazer? Se organizar?...
Alberto Abraão = Olha. Ele pode duas coisas. Não existe evolução jurídica sem evolução política. Por que? A questão da justiça é reflexo da política. Então, inicialmente você tem que fazer a discussão sob dois aspectos. Primeiro, uma organização social para discutir o problema. Tem que discutir o problema. Para que todos os reflexos sociais da realidade sejam absorvidos pelo judiciário. E teses existem. Os princípios existem. Por exemplo: equilíbrio econômico dos contratos. Se faz um financiamento, ele não pode crescer, não pode existir mágica que faça ele ser maior do que seu ganho.
Por que? Ninguém pode pagar mais do que ganha. Então, o crescimento desse financiamento, o valor, só pode ser na medida em que o Sistema que nós vivemos também responda com ganho suficiente para a pessoa. Se nós vivemos com salário de 180 reais, e esse é o salário mínimo, não é? Então todas as outras situações têm que se adequar ao salário mínimo de 180 reais porque este é o suficiente, legalmente, para cumprir todas as necessidades, não é isto? Então, a prestação da casa tem que se adequar aos 180 reais; saúde tem que se adequar aos 180 reais; educação, tudo aos 180 reais.
Portanto, o que se tem que fazer? Todos têm que ganhar nos limites de suas necessidades fundamentais. Não se pode, um pequeno grupo, absorver a riqueza de todos, empobrecendo todo mundo, concentrando a riqueza. Só existe uma forma de distribuir riqueza no mundo de forma lícita e digna: pagar bem e reconhecer o valor da força de trabalho.
Elias Brandão = Tudo deveria ser encaixar nos 180 reais que é o salário mínimo. Isso não acontece. Quem fica com o prejuízo sempre vai ser o mutuário...
Alberto Abraão = No sistema em que nós vivemos hoje é o mutuário. Na verdade ele não faz mais do que pagar um aluguel. Por quê? Ele paga, paga, e não consegue quitar a dívida. Ele é executado, despejado e a casa fica com o agente financeiro. Nada mais fez do que pagar um aluguel, um aluguel muito caro.
Elias Brandão = Observamos que hoje os mutuários estão se organizando. Um tipo de associação. Isso pode reverter o próprio Sistema Financeiro? Isso pode dar um subsídio ou fazer com que a justiça analise melhor a situação?
Alberto Abraão = Pode, pode...
Elias Brandão = Subsidia os advogados para poder...
Alberto Abraão = Pode. Aqui tem uma história recente na nossa região, ocorrida em 89 no Paraná. A construção de casas populares de 27 metros quadrados pelo projeto Margarida, instituído no governo Collor. Grandes quantidades de recursos foram aplicadas aqui no Paraná. Por que? O objetivo era eleger o Martinez. Buscava-se mostrar que o governo federal estava com Martinez e aplicava recursos na área habitacional.
E, em 93, começou aparecer o resultado daquelas construções feitas há dois, três anos. As pessoas não conseguiam pagar a prestação da casa de 27 metros, cujo valor consumia praticamente um salário mínimo por mês. Aí começou uma organização dos mutuários no Paraná. Ela deu exemplo ao Brasil. A base da organização foi a Cohapar, através da Cohapar, organizou-se a Famopar. Indiretamente o governo do estado, na época, subsidiava as ações da Famopar e eles conseguiram dar uma pequena amostra do que a organização social pode fazer, obrigando a Caixa Econômica a renegociar o valor das prestações. Reduziu o valor da prestação, estendendo o prazo contratual. Não foi a melhor solução, mas ajudou a evitar os despejos na época.
Hoje quem participou das negociações sabe que este tipo de negociação não interessa, porque à frente o valor da prestação volta a extrapolar as possibilidade de pagamento do mutuário. E aí a história de luta passou a ser diferente.
A experiência revelou que não pagar era a melhor solução. Não pagar e guardar os recursos para quando o Sistema retomasse a casa, pudesse comprar no leilão. O mutuário, dessa forma, encontrava a redução do saldo devedor a valores condizentes com o valor real da casa e, por conseqüência, a redução do valor da prestação a limites compatíveis com o ganho das pessoas de baixa renda. Esta solução por via indireta somente foi adotada pelo mutuário, porque o Sistema, insensível à realidade, não oferecia outro caminho que pudesse resolver o problema. Por outro lado, não é também o melhor caminho, pois se, por um lado, o mutuário resolve o problema econômico, por outro é jogado para marginalidade.
Ao nosso ver é o seguinte: alguém tem que perder. Achamos que é chegada a hora de fazer um balanço. Verificar o quanto os agentes financeiros até hoje ganharam. Passar isso a limpo e verificar o quanto teriam que ganhar. Verificar a dívida de todos os mutuários. Sabemos que o Sistema Financeiro teve diversas distorções ao longo de sua história. Financiou casas de alto padrão em regiões litorâneas, esgotando os recursos destinados para a construção de casas populares. Os prejuízos do Sistema Financeiro Habitacional não podem mais ser absolvido pelos mutuários.
Elias Brandão = Alberto, valeu nossa conversa. Foi ótima. Obrigado por enquanto.
Alberto Abraão = Obrigado a você Elias, pelo bate-papo.
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* Alberto Abraão é advogado publicista em Maringá/PR. albertorocha@uol.com.br
** Elias C. Brandão é historiador, mestre em Educação e doutor em Sociologia. canutobrandao@hotmail.com

[1] Cavidade ou vão em parede ou muro para colocar estátua ou imagem.